Orfanato

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Laura

Amanheceu muito frio naquela manhã de julho de 1997. Eu estava muito ansiosa e curiosa para conhecer o local que meu pai tinha reservado pra nos levar.
Ele tinha me desafiado a fechar todas as matérias do primeiro semestre da minha quarta série com nota dez, e como prêmio por eu ter gabaritado em tudo, ganhamos um final de semana em um hotel fazenda no interior de São Paulo.
Eu era filha única, de um casamento muito feliz.
Meu pai, homem íntegro e admirado. Trabalhava como mecânico de trens na antiga FEPASA (Ferrovia Paulista S/A), atualmente a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Era muito respeitado no seu trabalho. Autodidata, aprendeu a ler sozinho, pois na sua idade escolar - meados da quarta república - meninos negros só poderiam estudar, se o pai fosse branco, o que não era o caso do meu avô. Portanto, ao menino Bernardo, foi reservado o direito de trabalhar de ajudante na oficina mecânica para ajudar no sustento da casa. Seu pai, meu avô João, havia se perdido no alcoolismo devido as tristezas da vida, e sua mãe, vó Josefa, era lavadeira de roupas no rio. Fazia isso para sustentar os dois filhos que conseguiram sobreviver frente as difíceis situações que viviam: Bernardo (meu pai) e Benedita (Minha Didi). Não cheguei conhecer minha avó, que faleceu quando meu pai ainda era moço.

Dona Sílvia, minha mãe, era uma mulher lindíssima, inteligente e destemida. Cresceu na casa do patrão, que era comerciante, trabalhando com sua mãe que nunca a explicara quem era seu pai. Só sabia escrever seu nome pois o patrão exigia que soubesse. Apesar de ser analfabeta, foi a mulher mais inteligente que já conheci.

O apaixonado casal, conheceram-se jovenzinhos e contavam que a paixão aconteceu à primeira vista, mas só se uniram em matrimônio após os trinta anos, que foi quando meu pai conseguiu uma casinha alugada para morarem fora da favela. As pessoas tinham receio de alugarem suas casas para pessoas negras. Infelizmente, uma cultura que ainda hoje, se repete.

Meu pai todos os dias me falava que eu, era o melhor presente que a vida tinha lhe dado! Afirmava que eu tinha sido uma filha muito desejada, e que quando nasci, segundo ele, o céu parou naquele dia e os anjos cantavam meu nome – ele cantarolava imitando a voz dos anjos: Laurinha, Laurinha, sua missão é a nossa alegria!! – o que eu pedia para ele repetir inúmeras vezes, e ele assim o fazia, quantas vezes eu pedisse.

Minha mãe falava que ele iria me estragar, que não "prestava" dar tanto carinho pra uma criança, pois a tornava molenga pra vida. Ah! Se minha mãe soubesse que todo o carinho que ele me dava era pra poder fazer um estoque para o resto da vida, certamente não teria se incomodado tanto com nossos muitos momentos grudados um no outro.

Pra onde meu pai ia, quando não estava no trabalho, lá estava eu. Loja, mercado, banco, barbeiro, igreja, casa dos amigos, bar, rua, praça, embaixo do carro, em cima da casa. Em todos os lugares eu estava junto e conversávamos muito. Ele era meu melhor, e hoje me atrevo a dizer, único amigo. Definitivamente, o único homem da minha vida.

Nossa relação foi construída no amor e diálogo. Ele conversava comigo como se eu já fosse adulta, e fazia os maiores planos para minha vida: Laurinha, um dia quando você for uma linda mulher, vai ser a mais poderosa entre todas as outras mulheres do mundo - eu ria e perguntava como ele sabia – Porque eu sou um velho sábio! Eu vejo o futuro, e no meu futuro estou vendo que daqui dois minutos vou ganhar um super abraço – e suas previsões sempre se tornavam reais, pois eu o abraçava a cada dois minutos e cheirava seu pescoço e ele me apertava forte e repetia – Minha menina, você é o melhor presente que a vida me deu.

Naquela manhã gelada, não foi nada diferente do que eram todos os outros dias. Fui acordada por aquele lindo homem negro como ébano, alto, cabelo curto e olhos amendoados, dono de um sorriso alvo e largo, que preenchia todo seu rosto e o tornava meu herói e confidente. Ele me levou café com leite quente, numa caneca de alumínio e um pão francês com margarina, cantarolando:

AmorasOnde histórias criam vida. Descubra agora