Bilhete misterioso

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Laura

Apesar de estar em uma cama enorme, com o máximo de conforto possível de ser ofertado, vi a noite passar segundo a segundo marcado pelo ponteiro do relógio estilo barroco, talhado na madeira, disposto sob a penteadeira aos pés da cama. O som da voz da Alice e seus gemidos, ecoaram em minha mente repetidamente, como uma música torturante.
Nada me angustia mais do que a incapacidade de controlar as situações, e essa na qual estou vivendo, está testando todos os limites imagináveis do meu ser. Ter que encarar minha fragilidade em comandar todas as ações, retorce meu ego como uma cana sendo trilhada.
Com o Sol já despontando no céu azulado da capital e iluminando a área com vista para o amontoado de aço intitulado Torre Eiffel, levantei para atender o concierge que batia à porta com meu café da manhã. O recebi com gentileza, contrariando a falta de humor presente em minha personalidade. Sem apetite, descobri todas as bandejas que se fizeram mostrar com frutas frescas, pães diversos, bolos e frios. No sousplat encoberto com um pano de boca, um cartão em papel couché texturizado com arabescos com o endereço e horário. Imediatamente o peguei e liguei na recepção querendo saber quem seria o remetente, no entanto, ninguém sequer sabia da existência do bilhete, agora misterioso.
Liguei então para o Brasil, e pedi ao sr Pedro, redobrar a atenção na Bia, visto ser a única pessoa ligada ao Gordon que sabia exatamente onde eu estava e seria muita coincidência o próprio já me encontrar na gigante Paris. Minha mente, ao mesmo tempo foi remetida em nosso encontro patético no restaurante em São Paulo. Se ele está disposto a me encarar, espero que esteja preparado para me enfrentar.
Sem vontade comer, tomei apenas uma xícara de café puro, seguida de um banho rápido e me arrumei para o encontro, marcado para às 10h.
Embaixo do casaco, um coldre axilar bilateral, cada um com uma 9mm, igualmente na cintura com armas táticas e também, nas panturrilhas. Dessa vez, decidida ao que fosse preciso para me proteger e libertar meu amor. Solicitei que o sr Tonny viesse me buscar e não demorou em chegar.
Entreguei a ele o bilhete com o endereço do destino e, a contragosto ouvi sua sugestão de contatar a srta Marrie que certamente deveria saber dessa ação, talvez isolada ou não. A liguei e antes que pudesse completar o primeiro toque, já me atendeu:
Marrie, pois não? - falou com firmeza.
Recebi um bilhete no café da manhã contendo um endereço. Estou a caminho - falei sem titubear.
Me envie por mensagem e estarei a postos.
Ok. E o carregamento abordado ontem à noite?
Era falso! Apenas algumas roupas e móveis. Ainda estamos vasculhando a área.
Ok. Já envio o endereço. Até mais.
Desliguei e digitei o destino. Ouvir que o carregamento era falso, fez minha esperança se dispersar como fumaça. Mais uma vez a voz da Alice ecoou em minha mente e, suspirando, segurei a coronha de uma das pistolas, jurando por tudo que me é mais sagrado, encontrar Joseph e Alice.

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Alice

Depois que Joseph saiu do quarto, falando com Laura no telefone, tentei me levantar sentindo muitas dores abdominais devido aos chutes e socos que ele desferiu em mim a cada tentativa de falar com a Laura. Não demorou para que a Mirela surgisse trazendo uma bandeja com comida e água e uma troca de roupa.
- Tentou ser espertinha de novo? - me perguntou em tom de deboche ao ver minha situação.
- Tentei apenas conversar civilizadamente com minha - dei de ombros - talvez namorada.
- Aceita um conselho para se manter viva? - falou ao levantar minha camiseta para conferir se estava bem.
- Diga!
- Fala menos e ouça mais, pelo menos na frente do tio e dos guardas - fez uma careta ao perceber meu abdomem com coloração diferente - E deve ter trincado alguma costela. Está ficando roxo.
Olhei para meu corpo e onde levei os golpes, estava roxeando rapidamente.
- Pode me ajudar a entender que espécie de lugar é esse? - perguntei, segurando em sua mão.
- Alice, aqui é a mansão. Acredite, entre todos os lugares, é o melhor lugar para estar.
- Melhor lugar? - olhei em volta sem entender como este lugar poderia ser o melhor - Isso aqui parece uma prisão.
- Você realmente não tem noção de onde está não é?! - me perguntou com expressão de pena.
Balancei a cabeça em negação e dei de ombros.
- Vou ser bem rápida e teremos que sair para arrumar a recepção pois logo vai chegar carregamento novo - ela falou e me entregou a troca de roupa - Enquanto você se troca eu falo, evite expressões.
- Ok! - respondi quase sem olhar em seus olhos.
- Estamos em Paris, na mansão do tio Joseph. Agora você também é uma mercadoria dele e está dentro do esquema de tráfico humano. É isso.
A olhei com indignação e boquiaberta, tentando assimilar as palavras proferidas com pressa e discrição.
- Tráfico humano? - franzi o cenho - Que porra está falando, menina?
Ela baixou a cabeça e se afastou da cama, assumindo a posição de garçonete outrora já desempenhada.
- Fui muito expressiva? Por isso se afastou? Eu preciso saber mais sobre isso! Por favor Mirela, me ajuda? - falava rapidamente enquanto me trocava.
- Seja discreta, se não ele percebe pelas câmeras - balbuciou  e discretamente olhou para cima da porta - Já falei tudo que tinha que saber. Agora, siga as regras e tente evitar que todas nós sejamos prejudicadas pelas suas atitudes de heroísmo - revirou os olhos.
- Mas Mirela.. - continuei a falar e a porta foi aberta por um dos seguranças portando um fuzil que falou algumas palavras em russo e ela o acompanhou para fora do quarto.
Comecei a perceber que a situação que estou envolvida, é um tanto pior do que pensei. Olhava com desespero tudo ao redor, buscando alternativas de fuga ou enfrentamento.Uma hipótese de como vim parar até aqui se formou e entendi estar diretamente ligada às ações da Bia. Como um quadro exposto, tudo começou a fazer sentido! Desde o começo, Bia sempre esteve envolvida nessa situação horrenda. Ela me drogou com alguma coisa que me fez apagar. Me lembrei do seu olhar no restaurante afastado, meneando a cabeça em negativo, obviamente, debochando da situação na qual eu estaria a partir de então! Por que isso? Foi ela quem ficou com uma pessoa na minha frente! Eu não fiz nada além de sempre a tratar com carinho e educação. Meu Deus! Que absurdo! O tempo todo ela esteve ali, envolvida com o Joseph bem na minha frente e eu não percebi. O desespero por sair e encontrar Laura para a proteger, aumentou. Se eu fui pega assim, a Laura é o próximo alvo. Isso que significa a destruir, como Joseph prometeu inúmeras vezes. Em meio a meus pensamentos desesperados e acelerados, a porta se abriu e um dos seguranças me apontou para sair e o acompanhar.
Chegamos até a sala no pavimento inferior, onde todas as outras meninas estavam sentadas nos sofás e me olharam, direcionando olhares certeiros. Procurei por Mirela que estava em pé ao lado de um dos sofás e ao cruzar o olhar com o meu, baixou a cabeça rapidamente.
Por onde corria os olhos, buscava instrumentos que pudessem me ajudar a me proteger. Pouco mais de aproximadamente 10 minutos, Joseph surgiu na sala, sorrindo sarcasticamente e fumando seu fétido charuto.
- Minhas lindas - falou sorrindo - Hoje teremos novidades! - sentou-se em uma poltrona disposta no centro da sala  - Preciso que todas estejam dispostas pois a noite será de festa - sorria enquanto tragava o charuto - Logo mais teremos algumas outras coleguinhas de fino trato se juntando a vocês e espero não ter problemas de ciúmes - gargalhou ironicamente - Todas serão atendidas com rigor, desde as mais novinhas - apontou para Mirela - Até as mais velhas - direcionou a mão segurando o charuto para minha direção e balançou a sobrancelha - Logo chegará todo o suporte de maquiagem e roupas que precisam, mas agora, preciso que a piscina esteja intacta e os quartos limpos e arrumados - tragou o charuto e soltou a fumaça para cima sorrindo com sarcasmo - Vou direcionar algumas para as tarefas.
Levantou-se e começou a andar pela sala, apontando uma ou outra e direcionando o que fazer, até que veio em minha direção e me olhou dentro dos olhos.
- Você vai limpar a piscina - cutucou minha costela - Acredito que já está melhor, não é?!
Suspirei profundo contendo a raiva e a vontade de cuspir em sua cara imunda e o encarei. Sem desviar os olhos de mim gritou para Mirela:
- Vem aqui, anjinho! Mostra pra essa mais nova puta, onde fica a piscina e o quartinho de limpeza.
Me olhou mais uma vez da cabeça aos pés e saiu, gargalhando.
Mirela pediu que a acompanhasse e em silêncio, me levou até a piscina na área externa. Quando entramos no quartinho de limpeza, começou a falar e passar as mãos na cabeça desesperadamente:
- Eu não posso participar dessa festa. Ele vai me iniciar. O que faço? Preciso evitar, não posso participar. O que eu faço? Pensa, pensa! Ela não ligou mais, ele vai me iniciar.
A segurei pelos braços fazendo  me olhar.
- Te iniciar em quê? Quem não ligou? Ei, olha pra mim, respira fundo.
Ela me olhou profundamente, suspirou profundo e segurando as lágrimas falou:
- Eu fiquei mocinha - as lágrimas rolaram pelo seu rosto juvenil - Agora ele já pode - Interrompi sua fala colocando o dedo em sua boca e entendendo o desespero daquela garota, a abracei.
- Calma! Nós vamos achar uma solução. Não vou deixar ele fazer isso com você.
- Se minha irmã não ligar e dar notícias do Brasil, ele vai me iniciar - começou a soluçar com o choro - Ele já prometeu isso.
- Tenta ficar calma Mirela! Sua irmã vai ligar e isso não vai acontecer - tentei a acalmar - E eu não vou deixar ele encostar em você. Te prometo.
- Você já está machucada, Alice - limpou as lágrimas com a costa da mão - Não tenta mais nada pra ele não te mandar pro abrigo.
- Ok! Nem vou perguntar mais sobre o que é esse abrigo, mas vamos pensar em alguma solução. Te prometo! Agora, limpa as lágrimas e volte para a casa e me deixe aqui pra limpar a piscina.
Assim que ela saiu, voltei a buscar soluções para tentar me salvar e agora, impedir que essa pobre menina passe pelos crivos de um estupro. Comecei a separar o material a ser utilizado para limpar a piscina e me lembrei das aulas de química onde os professores reforçavam sobre os perigos de misturar produtos de limpeza. Como uma luz do fim do túnel, por alguns minutos me vi feliz em encontrar no depósito de limpeza, uma grande quantidade de cloro granulado para piscina e alguns vidros de álcool, além de água sanitária e outros produtos fortes. Estranhamente feliz, voltei a atenção para a limpeza da piscina, enquanto um pessoal responsável pela decoração foi chegando e enfeitando a área em volta. Uma pista de dança foi montada com mesa para dj e luzes, algumas poucas mesas dispostas e um serviço de buffet. Estava passando o aspirador aquático quando uma van com maquiadores, trazendo também roupas de festa chegou. Assim que terminei, me certifiquei de deixar a porta do quartinho de limpeza sem chave, de modo a me assegurar que qualquer eventualidade, teria meu arsenal preparado e voltei para o interior da mansão.
As outras moças já estavam sendo arrumadas. Avistei Mirela próxima da cozinha, me dirigi até ela e cochichei para que fosse em meu quarto assim que possível. Logo que cheguei no quarto, Mirela entrou rapidamente, ainda com os olhos assustados, tentando manter discrição. Sentei na cama de costas pra a câmera  e levantei a camiseta, fingindo mostrar a costela machucada. Ela chegou perto e a orientei :
- Estarei de olho em você. Caso algum homem te force a alguma coisa, já sei o que fazer. Fica tranquila, ok?!
- Ok! Obrigada. Te devo essa! - me sorriu e pude ver verdade e alívio em seu sorriso.
- Não me deve nada. Estarei sempre perto de você. Vamos sair juntas daqui.
Ela saiu e eu fingi ir ao banheiro antes de descer novamente para me arrumar. Ao chegar na sala, Joseph estava observando tudo e me chamou, com expressão séria:
- Mirela me falou que você está com muitas dores na costela, é verdade?
- Sim - limitei a resposta.
- Pode tomar remédios,  tem na cozinha - apontou o cômodo em questão - Hoje vou te poupar de encontros. Estraga meus negócios, mulheres imperfeitas - sorriu ironicamente.
- Obrigada, chefe - respondi, também com ironia e sai em direção à cozinha tomar algum remédio que encontrasse.
Assim que todas ficaram prontas, incluindo a mim mesma que fui cuidadosamente maquiada por uma equipe profissional que não dirigiram uma palavra a nenhuma de nós, saímos para a área externa iluminada com show de luzes, buffet sendo servido, dj tocando e muitos senhores confraternizando com copos de whisky e drinks diversos.
As moças, assim que passavam ao lado dos referidos senhores, todos muito bem vestidos em smokings de fino corte, eram puxadas ou aliciadas. Procurei por Mirela que procurava passar longe dos homens para ir se servir no buffet. Ao chegar perto dela, me olhou e sorriu.
- Obrigada pelo remédio - a agradeci e retribui o sorriso.
- Obrigada pela amizade - sorriu e saiu.
A festa estava correndo da forma que Joseph estava desejando, pois sua alegria estava visível a todos os presentes, até que um dos seguranças cochichou algo em seu ouvido e ele imediatamente se retirou.
Continuei  observando tudo que acontecia à distância, mantendo a atenção na Mirela que por vezes era cortejada por algum senhor, ofertando bebida e ela recusava gentilmente.
Um tempo depois que Joseph saiu, retornou com um sorriso ainda maior, dirigiu-se até o dj e após parar a música, falou ao microfone:
- Enquanto os ratos se distraíram no porto, nossa carne nova chegou no aeroporto em segurança - levantou o copo em brinde e todos aplaudiram - Continuamos intactos e intocáveis! Divirtam-se que logo nossas meninas chegam.
A música voltou a tocar e me vi impotente perante todo esse esquema podre e muito bem organizado desse homem asqueroso e completamente maluco. Ainda fui obrigada a contemplar a chegada de quatro lindas moças, de aparentemente 16, 17 anos, com expressão de surpresa e felicidade que chegaram participando alegremente da festa.
Ao ver que um dos senhores fixou parada ao lado da Mirela, me dirigi ao Joseph e solicitei que ela me acompanhasse pois não estava me sentindo bem e já estava a ponto de estragar toda a festa. Ele fingiu não ouvir e continuou a se divertir com três moças que o cortejavam. Tive então que apelar ao bom e velho vexame: me dirigi até o meio da pista de dança e discretamente induzi êmese, colocando os dedos no fundo da garganta. O resultado não poderia ser melhor! Afastei todos que estavam dançando quando o plano deu certo e despertei todos os olhares pra mim. Joseph rapidamente, não querendo que sua festa fosse impedida de continuar, solicitou que Mirela me acompanhasse para o quarto e ficasse me observando.
Subimos, escoltadas por um dos seguranças que permaneceu ao nosso lado durante toda a noite, impedindo que tivéssemos algum tipo de conversa.
No silêncio do quarto, ouvia a respiração da Mirela que rapidamente  caiu num sono tranquilo no colchão colocado no chão ao lado da minha cama e a contemplei tão nova e linda, mas já tão cheia de preocupações. O que já viveu essa menina? Como veio parar aqui? Quanto da sua vida foi roubada pelo Joseph? Enquanto ouvia as batidas das músicas eletrônicas tocadas na festa na área externa, percebi que um sentimento de cuidado nascera por essa menina e, mesmo achando absurda a ideia, agradeci pelo destino ter me trazido até aqui para poder ajudá-la. Fechei os olhos tentando descansar, mas a imagem da Laura me fez companhia minuto a minuto. Lembrava do seu sorriso encantador, o cheiro da sua pele, seu beijo arrebatador e o calor de seu abraço que me envolve inteira. Nosso último momento juntas, foi tão rápido! Deveria ter aproveitado mais, a beijado com mais calma e abraçado mais forte. Todos nossos momentos me visitou no decorrer da noite que pouco a pouco foi cessando os barulhos e tomada por um silêncio ensurdecedor. Quando o sono me venceu, fomos acordadas por um dos guardas que bateu à porta nos despertando e em russo, falou com a Mirela que respondeu e começou a se arrumar rapidamente.
- É pra descer? - perguntei sonolenta.
- Sim! Joseph tem compromisso e quer que o sirva - falou ainda bocejando - Obrigada pela noite. Faz anos que não durmo tranquila, como hoje - sorriu gentilmente - Bom dia!
- Bom dia, magrela! - sorri em resposta.

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