Após o discurso da rainha, entramos novamente no palácio. Posso ver o ódio e a tristeza nos olhos de Kastian, possivelmente alguns corpos eram de soldados dos quais ela gostava ou que haviam crescido com ela.
— Os fragmentos. Lyssa, você guardou os fragmentos? — Pergunta histérica.
— Antes que eles chegassem na sala de arquivos fiz um pequeno feitiço, nem devem ter notado que existia algo lá. — Kastian corre até a sala de arquivos e nós a seguimos, entendo a preocupação. Ninguém chegou a ler o que estava escrito em todos aqueles diários, talvez tenham informações importantes e valiosas para nós. — Desfaça o feitiço. — A pilha de papéis aparece diante de nossos olhos como se nunca tivesse saído dali. — Leiam, todos vocês, temos que saber se existe algo útil aqui, ou alguma coisa que precisamos proteger.
— Kastian, são no mínimo cem diários diferentes.
— Justamente por isso que devemos começar o quanto antes. — Pego um dos pequenos cadernos enumerado como primeiro, abro a primeira página e há um mapa de todos os reinos. Do lado deles um lugar escrito terra, no lugar onde marca os céus existe uma seta vermelha e uma linha pontilhada leva até a terra.
Folheio para próxima página que tem uma gota de sangue no canto e contém textos marcados por horas, acredito que tenha sido do dia que foi para terra.09:36 "Os céus foram invadidos, a rainha desapareceu, todos ficaram parados no tempo, menos eu e a pequena herdeira, a cobri com minhas asas para que ficasse segura. Os demônios estão atrás dela, querem garantir que a linhagem real seja exterminada, mas não irei permitir."
11:40 "Chegamos a terra, finalmente um lugar onde não irão nos procurar. Entretanto tenho certo receio de que algum humano veja minhas asas e tente algo contra mim e contra esse serzinho que agora sou responsável."
14:20 "Cortei minhas asas. Nenhum feitiço angelical seria capaz de escondê-las, essa era a única alternativa para nos manter em segurança, minha camisa está encharcada de sangue mas valerá a pena se conseguir protegê-la."
18:17 "Vi um casal brincando com uma criatura de quatro patas em um quintal, a casa deles é grande e parece aconchegante para passar uma noite, está frio, se não conseguirmos abrigo poderemos morrer e tudo terá sido em vão."
22:06 "Consegui entrar sem que eles percebessem, estamos no porão, está gelado, sinto que ela está começando a tremer de frio e está prestes a chorar, tentarei acender uma chama para esquenta-la."
00:12 "Fiz com que ela se acalmasse, uma pequena chama foi o suficiente para aquece-la. Agora somos somente nós dois nesse mundo completamente desconhecido. Como devo chamá-la?"
04:00 "Há um buraco na madeira da casa, o vento frio passou a entrar com mais força, precisamos sair daqui."
5:03 "Estamos agora na parte de cima da casa, onde uma janela está entreaberta. Neva lá fora e um pequeno floco de neve caí sobre o rostinho corado desta linda criança. Sei como devo chamá-la, Khione, como a deusa da neve que os humanos acreditam, um nome que remete ao nosso novo lar."
Assim que termino de ler a primeira página me encontro chorando, lembrando que ele se foi. Como queria lhe dar um último abraço, era minha família, meu porto seguro, ele era o meu lar.
— Você está bem? — Ouço Lyssa sussurrar. — Por que está chorando?
— Estou bem. — Enxugo as lágrimas.
— Era o seu avô não é mesmo? Não ouvi muito sobre ele. — Diz apontando para o diário que está lendo.
— Era, é só falta dele. — Dou um sorriso em meio as lágrimas.
— Pelo que li até agora ele a amava muito. Nesse diário ele conta o dia em que você aprendeu a andar, praticamente todo o diário é sobre você. Algumas pontas soltas de pesquisas e conhecimentos existem, mas o foco é você.
— Percebi isso por essa primeira página.
— O número um? Foi aí que tudo começou?
— Foi aqui que a gente começou, foi onde a nossa família começou.
— Posso te fazer uma pergunta? — Lyssa diz.
— Claro. — Respondo com gentileza.
— Onde estão suas asas? — Diz olhando para minhas costas.
— Eu não tenho.
— Isso não é possível. — Ela ri. — Aqui também menciona suas asas crescendo e o Arwen lutando para te manter no chão.
— Ele deve ter cortado para que ninguém percebesse.
— Posso olhar? Saberia reconhecer uma cicatrização de asas, é uma marca que fica para sempre.
— Fique a vontade. — Levanto minha blusa até chegar nos ombros. Lyssa passa a mão por minhas costas a procura de alguma elevação que se pareça com uma cicatriz. Suas unhas arranham levemente minha pele, mas não me incomodo com isso.
— Tenho duas notícias para você. — Diz sorridente e empolgada. — Suas asas não foram cortadas, elas estão bem aí.
— Acho que você está alucinando Lyssa.
— Por favor, me chame de Lys, e não estou alucinando, seu avô só usou um feitiço aberto das fadas, pode deixar algumas coisas invisíveis, se feito corretamente só uma fada pode desfazê-lo. Ele não precisaria ter cortado as dele se não tivesse tantos anos de existência.
— Então você está dizendo que eu tenho asas?
— Exatamente o que estou dizendo.
— O que está esperando? Retire esse feitiço. — Digo mais empolgada que nunca, como uma criança com um doce.
— Só um instante. — Ela sussurra algumas palavras e quando termina a última, brancas e enormes asas aparecem, esticadas tomando conta da sala.
— Mas o que? — Kastian grita. — O que vocês duas estão fazendo? E de onde vieram essas asas? Quer saber, não me importa, só coloque elas no lugar certo e voltem ao trabalho. — Fala voltando os olhos novamente para o diário que está lendo. Os outros que estão presentes não se pronunciam pois tenho certeza de que não querem irritar e muito menos contrariar a rainha em fúria.
— Elas são enormes. — Digo eufórica.
— Pode voar agora, se é que se lembra como.
— Devo me lembrar, é como andar de bicicleta, uma vez que você aprende, nunca se esquece.
— Como andar de que? — Ela faz uma expressão confusa.
— Me esqueço de que vocês não tem costume com esse tipo de expressão. Bicicleta, um meio de locomoção dos humanos. Quando nós aprendemos podemos ficar anos sem andar novamente, mas sempre lembramos como se faz.
— Talvez seja do mesmo jeito com suas asas, adoraria que você me levasse voando para algum lugar.
— Provavelmente morreriamos. — Solto uma risada consideravelmente alta e Kastian nos encara novamente com olhar de reprovação.
— Não tenho medo do perigo. Mas tenho medo de minha irmã, então acho melhor continuarmos nossa leitura sem mais interrupções.
— Talvez nós iremos a algum lugar um dia. — Sussurro pela última vez antes de voltar a ler.
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Seis Mundos: Novas Origens
Fantasía(LGBTQA+) Khione é uma mulher de vinte anos, com muitos traumas e um passado doloroso que acaba de se mudar para New York, deixando para trás o avô, a mãe e uma história toda da qual ela ainda não sabe que faz parte, heranças passadas de pai para fi...