Capítulo Quarenta e Um

98 22 2
                                    

— Faremos isso. — Digo por fim.

— Agora vão, precisam dormir, nem que seja um pouco. Amanhã os povos de Niran e Faleias estarão aqui.

Todos saem da sala, exceto eu e Mykal.

— Você está bem? Os ferimentos...

— A Lyssa cuidou bem disso. Os seus? Como estão? — Chego perto dela. Sei que ainda anda com dificuldade, sua camisa está encharcada de sangue seco e uma gota de sangue sai de sua boca. — Aparentemente nada bem. — Dou uma tentativa de sorriso e limpo o sangue perto de seus lábios.

— Doem menos, pela manhã devo estar bem. — Diz aconchegando a bochecha em minha mão.

— Não seria melhor pedir a Lyssa para curá-los? — Tiro minha mão de seu rosto.

— Fique tranquila, foi só uma fratura de múltiplas costelas e uma perna quebrada, nada para se preocupar.

— Isso me deixa muito mais calma. — Dou uma risada.

— Está cansada?

— Cansada sim, mas sem nenhum sono. — Me recosto na parede, afastando-me de Mykal, mas ela não permite esse espaço pois se aproxima de mim, quase colando nossos corpos.

— Se quiser podemos andar pelo castelo, talvez. — Dá mais um passo me colocando contra parede, olhando para meus lábios.

— Não é uma má ideia. — Respondo e ela me estende a mão.

— Não mesmo, sou uma excelente companhia. — Pisca para mim.

— Claro. — Saímos da sala de reuniões. O palácio está em silêncio, todos estão em seus quartos, os poucos soldados que restaram ficam ao lado das portas do quarto real. Nos aproximamos da saída e paramos em frente o portão principal.

— O que acha de sairmos? — Me olha com um certo medo da resposta.

— Uma noite de ar fresco me faria bem.

— Por tudo que está acontecendo nossos próximos dias serão difíceis.

— O que mais você esperava de uma guerra? — Dou uma risada genuína.

— Quero voltar aos dias de paz, estou prevendo dores de cabeça. — Ri junto a mim.

— Sabe que Kastian te colocará de frente de algum exército, não sabe?

— Por que eu?

— Se me recordo bem, foi você quem matou quinze de seus soldados sozinha.

— Como soube disso?

— Sua fama circula por muitos reinos Mykal, e o fato de estar literalmente coberta de sangue e lambendo os dedos quando Psyche e eu fomos a Devin ajudou muito na confirmação dos fatos.

— Eram traidores.

— Isso não importa, o que importa é que se conseguiu matar sozinha quinze dos seus melhores soldados, com certeza será capaz de treinar mais seres para agir como você.

— Talvez. — Se senta na grama dos jardins reais.

— Você é incrível lutando Mykal, será uma ótima comandante. — Sento ao seu lado, colocando minha cabeça em seu ombro.

— Está exagerando. — Encosta a cabeça contra a minha.

— Bem que queria estar, realmente é muito boa na arte de matar pessoas.

— Assassinato agora é arte?

— Chame como preferir. — Me deito na relva olhando as estrelas.

— São muito mais lindas aqui do que em Devin. Sem todo aquele ar infernal. — Aponta para uma constelação da qual não me recordo o nome. — Quase tão belas quanto você.  — Sussurra.

— O que disse? — Indago como se não tivesse ouvido.

— Que são quase tão belas quanto você pequeno raio de sol. — Diz virando o rosto em minha direção e olhando em meus olhos. Eu a encaro por um momento e sinto meu corpo arrepiar. Eu a quero, meu coração a quer, mas minha mente não permite que eu a tenha. Ela continua me fitando e em um rompante aproxima seu rosto do meu. Em reflexo eu a afasto.

— Eu não posso, não consigo. — Falo. Não minto, não consigo beija-la, por mais que queira intensamente.

— Eu sei, eu sei. — Diz com a voz triste virando para o lado, continuando a observar o céu.

— Me desculpe, eu queria, como queria. Mas toda vez que olho para você eu...

— Não precisa se desculpar raio de sol, sei o peso do que fiz, sei que uma das consequências é não poder te ter. E isso me dói, muito.

— Talvez daqui um tempo, é que tudo é tão recente, não que eu te culpe ou não que não tenha te perdoado. Sei está arrependida, mas toda vez que te olho lembro dele, lembro do você tirou de mim mesmo sem saber, lembro de tudo que ele já fez e eu não pude fazer nada para ajudá-lo.

— Como já disse, eu esperei muitos anos para te conhecer, para sentir a sensação que imaginava ser contos e lendas de meu povo. E foi tudo como a cultura de Devin relata, você se encanta automaticamente por cada traço da pessoa, memoriza todo ser em questão de segundos, se sente completo. Eu sei que pelo menos por alguns segundos você também se sentiu assim.

— Senti, eu senti. — Digo pensando no que poderíamos ser se minha mente me deixasse esquecer esse único fato, se minha memória apagasse essa lembrança.

— Quem sabe um dia, não é mesmo?

— Quem sabe. — Alguns vagalumes passam por nós, um pouco diferentes dos que conheço, Mykal levanta de repente prendendo um deles com as mãos e correndo. Poucos segundos depois volta com um colar brilhante, então percebo que é o vagalume que ela capturou que brilha ali, preso a um pingente. Ela se agacha até ficar na altura de meu pescoço, coloca meu cabelo delicadamente para o lado e passa a fria corrente do colar em minha pele. O metal me faz ficar arrepiada de frio, e a brisa colabora com a situação.

— Está com frio? — Pergunta com certa preocupação.

— Um pouco mas nada extremo, não se preocupe.

— Podemos entrar se quiser.

— Não quero. Aqui está bom, nada que umas chamas não resolvam. — Falo projetando pequenas faíscas em volta de meu corpo, que me aquecem. Me esqueço que Mykal nunca me viu em chamas e me recordo ao ver sua expressão boquiaberta. — Não vou me queimar. — Dou um sorriso manipulando as chamas ao meu redor, para que ela entenda que não me ferem. — Mas por quê? — Aponto para o colar que me deu.

— Para você lembrar dessa noite.

— E o que tem de tão especial nela para ser lembrada?

— O nosso talvez. Daqui alguns anos iremos olhar para trás e para esse pingente e lembrar que um dia nós éramos apenas um talvez. — Respira fundo e sussurra uma última frase. — E pode não ser nessa década, nesse século ou nesse milênio, mas ainda poderei te chamar de minha. — O silêncio se instala no ambiente, ela busca meus dedos para entrelaçar aos dela, e eu permito, e por alguns segundos esqueço completamente tudo. Somos somente eu e ela.

Seis Mundos: Novas OrigensOnde histórias criam vida. Descubra agora