LXVIII.

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ALBERT SHAW.
1 ANO ANTES.

    Finalmente consegui a casa. A "ganhei" — tecnicamente, minha irmã me deu a casa, eu a obriguei, após cortar seu pulso. Mas isso não importa. Não mais.
    Fiquei surpreso em ver o imóvel pela primeira vez. É o lugar onde passei toda a minha infância. É o lugar onde eu tranquei meus traumas às 7 chaves.
    Há dias em que as paredes parecem se fechar sobre mim, dias em que o chão parece tremer sob meus pés. Eu sei que nada disso realmente acontece. A verdade é que sou eu quem está desmoronando.
    Estou cansado de acordar e simplesmente não me lembrar de nada do que fiz no dia anterior, cansado de não me lembrar de nada da minha infância.
    Lembro-me de algumas coisas.
    E̶u̶ n̶ā̶o̶ v̶o̶u̶ t̶e̶ m̶a̶c̶h̶u̶c̶a̶r̶.
    P̶o̶r̶ f̶a̶v̶o̶r̶, m̶e̶ s̶o̶l̶t̶a̶.
    S̶a̶b̶e̶ q̶u̶e̶ h̶á̶ a̶l̶g̶o̶ d̶e̶ e̶r̶r̶a̶d̶o̶ c̶o̶m̶ v̶o̶c̶ê̶, n̶ã̶o̶ s̶a̶b̶e̶?
    N̶i̶n̶g̶u̶é̶m̶ s̶e̶ l̶e̶m̶b̶r̶a̶ d̶e̶ v̶o̶c̶ê̶, n̶e̶m̶ s̶a̶b̶e̶m̶ q̶u̶e̶m̶ v̶o̶c̶ê̶ é̶.
    V̶o̶c̶ê̶ e̶s̶t̶á̶ m̶e̶n̶t̶i̶n̶d̶o̶.
    N̶ã̶o̶ f̶a̶ç̶a̶ i̶s̶s̶o̶, p̶o̶r̶ f̶a̶v̶o̶r̶!
    V̶o̶c̶ê̶ s̶ó̶ p̶r̶e̶c̶i̶s̶a̶ f̶i̶c̶a̶r̶ p̶a̶r̶a̶d̶o̶, A̶l̶b̶e̶r̶t̶.
    P̶o̶r̶ f̶a̶v̶o̶r̶, p̶a̶r̶e̶! P̶o̶r̶ f̶a̶v̶o̶r̶!
    Nada que seja realmente importante.
    Há 27 anos, recebi o diagnóstico de Transtorno Dissociativo de Identidade.
    Meu psicólogo costumava me dizer que eu desenvolvi mais de 2 personalidades por causa dos meus traumas de infância. Eu jamais poderia saber se ele estava mentindo, então pesquisei.
    Esse transtorno é causado por um grande trauma sofrido pela pessoa ainda na infância. Em muitos casos, esses eventos traumáticos são frutos de abusos sexuais, físicos ou psicológicos.
    Dener nunca tentou... me tocar. Nunca sentiu nenhum tipo de atração por mim. Ele me tratava com o mínimo de respeito que eu mereço, mas de resto, tratava-me como lixo. A única coisa que ele não sabia era que seu irmão era o seu oposto.
    Depois de tantas pesquisas e livros lidos, percebi que, na verdade, Dener era um psicopata, eu tenho certeza. O pai de crianças, presente e amoroso era uma máscara. Nada além disso.
    Descobri que aos 16 anos, desenvolvi a Síndrome de Estocolmo. Não importa o quanto Malcolm me machucasse, de algum modo, eu não odiava. De certo modo, gostava de sua companhia, mesmo que ela acabasse completamente com meu dia.
    Jamais irei me perdoar por tê-lo deixado ir, por não ter o matado. Ele está solto, livre e possivelmente abusando de outros garotos como eu.
    Olhar-me no espelho é doloroso. É estranho pensar no homem que me tornei, pois, aos meus 14 anos, pensava que jamais passaria dos 18.
    São incontáveis as vezes em que tentei suicídio, incontáveis são as vezes em que vizinhos ligaram para a ambulância após me encontrarem com os pulsos cortados ou engasgando em minha própria saliva após ingerir uns 27 remédios de uma vez.
    Não me relaciono com ninguém há anos. Homens adultos se tornam menos assustadores quando você se torna o abusador.
     No dia 28 de novembro, acordei cedo demais para ter descansado o que precisava. Tomei um banho longo e vesti minhas roupas. Uma calça jeans azul e uma camisa cinza sem estampa.
    Limpei o que eu achei que precisava ser limpo, das poeiras entre os livros às migalhas de pão em cima da mesa.
    Recordo-me de acordar e encontrar nomes escritos em papéis brancos. Escritos com sangue, meu sangue. Edgar e Frank. Foram escritos repetidas vezes, de novo e de novo.
    Fiz um curativo no corte para impedir que ele infeccionasse e então o ignorei.
    Acordei com um novo objetivo. Um que estive planejando há dias.
    Naquele dia, eu me tornei o monstro o qual sempre temi.

    Andei até um mercado e comprei tudo o que eu precisava. Tudo o que eu precisava para tornar a vida de alguém um verdadeiro inferno.
    Eu precisava saber. Precisava saber como é estar no controle da situação... e é maravilhoso.
    Seu nome, Griffin Stagg. O descobri assistindo o jornal. Tem 7 anos, mas não é como se isso fosse me impedir de alguma coisa.
    Ao meio-dia, saí de casa e dirigi pelas ruas de Denver. Vê-lo andar na calçada, tão frágil, cabisbaixo, e desatento era a melhor visão que eu poderia ter no momento. Acelerei a van e a parei na rua, muitos metros a frente.
    Agarrei duas sacolas cheias de doces que estavam em cima do banco do passageiro e saí do veículo.
    Andei até a calçada e fingi tropeçar no meio fio.
    Talvez ele possa gostar de mim como eu gostei de Malcolm...
    Isso foi há 10 dias. Agora, eu o enterro no porão de minha segunda casa. Foi um acidente, eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    21 de dezembro de 1977.
    27 de dezembro de 1977, seu nome é Billy Showalter.
    1 de janeiro de 1978.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    5 de janeiro de 1978.
    10 de janeiro de 1978, seu nome é Bruce Yamada.
    24 de janeiro de 1978.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    Eu perdi o controle.
    31 de janeiro de 1978.
    2 de fevereiro de 1978, seus nomes são Maryann Blake e Vance Hopper.
    5 de julho de 1978.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.
    EU PERDI O CONTROLE DE NOVO.

    Ela era minha sobrinha.

    Ela era minha irmã.
 
    Há algo muito errado comigo. Eu sei o que é, mas não consigo controlar.
    Eu tentei acabar com isso, mas sou um covarde.
    Eu mereço morrer? Sim.
    Eles mereciam viver? Sim.
    Ela deveria ter me matado? Sim.
    Eu me arrependo? Não.
    Se eu pudesse, faria tudo de novo. Esse é o poder de estar no controle. Eu não quero ser respeitado, quero que eles tenham medo de mim.
    Aquelas sombras que me seguem e aqueles olhos vermelhos que me observam não podem me tocar. Não podem me machucar, parar-me.
    Estou sonhando com Mary e Vance há dias. Simplesmente não consigo mais dormir. Onde ela me toca, ela me marca. Como eu fiz com ela.
    As marcas vermelhas e roxas, e os arranhões são feitos dela. Eu sei disso.
    Algo ruim vai acontecer comigo, e eu sei quem irá fazer isso.
    26 de outubro de 1978.
    28 de outubro de 1978. Merda... Seu nome é Finney Blake.
    29 de outubro de 1978, eu não estou perdendo o controle, estou enlouquecendo de vez.
    E̶l̶e̶s̶ n̶ã̶o̶ p̶o̶d̶e̶m̶ m̶e̶ m̶a̶c̶h̶u̶c̶a̶r̶.

𝐁𝐄𝐋𝐈𝐄𝐕𝐄 𝐔𝐒, Vance HopperOnde histórias criam vida. Descubra agora