Capítulo 33 - Selena Piacessi

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Estou exausta, total e completamente dolorida, apesar de ter sido medicada no hospital.

A surra que levei de Cecilia está começando a produzir seus resultados. Além da dor, as marcas por várias partes do meu corpo. O enorme espelho no banheiro não me deixa mentir. Estou pavorosa.

Nunca vi Cecilia daquele jeito e confesso que me assustei bastante.

Tive medo de Cecilia como tive medo da minha mãe, nunca vi nada tão parecido. Havia tanta raiva, tanta dor... tanta tristeza e tanta frustação.

A Selena de ontem, evitaria a irmã para todo o sempre e amém.

Mas milagrosamente, não sei bem ao certo porquê, embora ainda esteja assustada, hoje eu consigo entender minha irmã.

Tentando me colocar no lugar dela, percebo que não deve ser fácil viver tentando proteger todo mundo o tempo todo, se ferrando sempre e inevitavelmente falhando algumas vezes.

Deve ser muito cansativo estar sempre alerta, sempre em busca de possíveis pedras para tirar do caminho dos outros e sentir que nunca fez o suficiente.

Cecilia nunca contabiliza suas vitórias, somente suas perdas. Ela fala de mim, mas somos muito parecidas nesse quesito.

Embora ela seja apenas e tão somente, nesse aspecto e eu na vida, como um todo.

Vou para uma das suítes que estão ocupadas e coloco a banheira pra encher.

Enquanto ela enche lembro vagamente de tentar tirar Barbara da banheira, mas sem obter sucesso. Lembro de ter ficado intimamente feliz por ela estar dormindo e não poder me bater naquele momento, nem me queimar com seus cigarros. Entretanto depois, conforme os dias foram passando, descobri que nada era tão ruim que não pudesse piorar e sim, piorou e piorou muito. Cheguei a sentir saudades das queimaduras de cigarro e dos tapas na cara.

Sacudo a cabeça, me recuso a voltar pra esse lugar ruim, me recuso a pensar em quem me fez tão mal. Me recuso a permitir que eles continuem me afetando. Já fizeram isso por vinte e cinco anos, agora já passou da hora de dar um basta nisso tudo.

Respiro fundo e vou até a sala onde fica meu quarto e separo meu pijama e minha toalha. Pego alguns sais de banho que ganhei no spa no dia anterior, meu kindle e carrego tudo comigo para o banheiro.

Hoje não quero pensar, hoje vou me refugiar no meu livro "Linda, doce e desastrada", que está quase chegando ao fim.

Ajeito as coisas no banheiro, coloco o kindle ao lado, ligo meu celular na trilha sonora que Kenny G gravou para o filme "Tudo Por Amor" e entro na banheira.

Me permito ficar ali, viajando no som do saxofone e nas linhas do meu livro, rindo da deliciosa e atrapalhada Khyara e suas desventuras pela vida, que ela segue sem perder o bom humor.

Quarenta minutos depois, estou enrugada e congelada.

Mas livro bom é assim. Você diz pra si mesma que vai ler somente mais um capítulo e quando vê, está lendo o outro e o outro e o outro, até que finalmente você chega no fim.

Gosto muito quando fazem livros e filmes em que a mulher sai daquele papel de coitadinha e mostra que é dona da porra toda. Patrícia já me recomendou outros livros dessa mesma autora no wattpad, trata-se de uma série chamada Mulheres Poderosas. Como contém temas sensíveis, ela recomendou que eu conversasse com a psicodoida primeiro antes de mergulhar na leitura. Obviamente eu já marquei na minha biblioteca e colocarei em minhas leituras futuras. Tão logo eu esteja preparada para tais emoções.

Depois de me enxugar e colocar um pijama da Dóris super quentinho, vou até a cozinha vê se encontro algo comestível. Minha ideia era roubar algo da casa de Cecilia, mas não deu tempo, então...

Encontro algumas batatinhas, Yakult e chocolates.

_ Os deuses me amam um pouco. – Digo pulando e carregando tudo para o sofá.

Acabo de descobrir que até Netflix a televisão tem. Lembro apenas de ter solicitado a instalação da internet, mas em momento algum assinei qualquer canal de entretenimento, até porque assisto muito pouco. Sempre prefiro os livros.

Passo os olhos pelas muitas opções que há no catálogo, mas nada me encanta. Tem várias adaptações de livros, tanto hots quanto de época. Cinquenta Tons de Cinzas, 365 dias, Os Bridgertons ... Sou tão apaixonada por livros que uma adaptação errada me enfurece e como hoje só quero felicidade, resolvo pular.

Embora eu ame cada um desses livros, opto por não ver suas adaptações. Prefiro viver na ignorância a manchar a visão que eu tenho desses livros maravilhosos.

Depois de muito procurar encontro uma série que me chama bastante a atenção.

"Cidade Invisível". Trata-se de uma série sobre a cultura brasileira. Saci. Mula sem cabeça. Cuca. Embora eu não seja brasileira, foi nesse país que encontrei refúgio. E nada mais justo do que valorizar a produção nacional de um país tão belo.

Puxo uma manta no colo, abro meu potinho de batatinha e começo a devorar literalmente a série e as besteiras que tenho nas minhas mãos.

De episódio em episódio, mal vejo o tempo passar. Como é lindo esse ator Marco Pigossi, lembro de vê-lo numa reprise de novela que Cecilia assistia num canal a tarde e o achava o máximo.

Já é de madrugada, estou me sentindo leve, a dor no corpo parece ter melhorado bastante com a medicação do hospital, coloco as embalagens do que comi no lixo da cozinha, vou ao banheiro, escovo meus dentes e me jogo na cama.

Amanhã é véspera de ano novo, obviamente vou passar sozinha, uma vez que não tem clima pra ir pra casa da Maggie no animo que as coisas estão.

Sinceramente, não me sinto triste por não ir, só me sinto chateada por não ter conseguido falar com Cecilia. Tenho a impressão de que algo não está completo e quanto mais penso nisso, mais tenho certeza de que preciso falar.

Quando Tristan me ofereceu seu apoio e disse que estaria ali comigo, primeiro me senti envergonhada com medo de que ele sentisse nojo ou pena de mim. Esses dois sentimentos parecem punhais me sendo fincados em mim, mas quando eu olhei em seus olhos... senti que talvez, talvez tudo fosse menor do que eu imaginava.

Como Maggie diz, talvez o dragão que eu pintava fosse apenas um lagartinho.

Talvez quando Cecilia souber ela consiga me entender. Assim como agora consigo entender ela e sua proteção excessiva.

Talvez Tristan possa tentar me beijar novamente algum dia e eu não corra desesperada e com medo. E ele não me olhe triste e ferido.

Talvez eu possa finalmente ter uma vida relativamente normal.

Talvez eu possa finalmente viver de verdade, não apenas sobreviver, passando pela vida.

Há um mundo de possibilidades infinitas e desconhecidas e eu estou ansiosa pra conhecer, mas sim... também estou morrendo de medo de acordar e descobrir que tudo não passa de mais uma história.

De um lindo livro que li, mas que não consigo chegar ao bendito final feliz.

Respiro fundo e dou um grito com o travesseiro na cara.

Me recuso a ir pra esse lugar escuro e sombrio em que eu vivo a maior parte dos meus dias. Agora que consigo sentir alguns raios de sol sobre mim, quero abrir espaço no coração para que ele me ilumine por completo.

Me arrumo na cama e apago a luz, mesmo duvidando que agora eu consiga dormir.

Lembro de Tristan e fico imaginando o que ele estaria fazendo...

Obviamente, àquela hora, deveria estar dormindo... como todos os seres humanos normais.

Sorrio e fecho os olhos lembrando de como era a sensação dos seus lábios no meu.

Essa lembrança me embala, me satisfaz, me acalenta e sem perceber eu relaxo e durmo.

JUNTANDO OS PEDAÇOSOnde histórias criam vida. Descubra agora