Capítulo 48 - Anika Santos Devi

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Por favor Anika, se se sentir confortável, compartilhe conosco sua história e como foi o processo de hipnose pra você.

_ Olá a todos. – Ela diz timidamente. _Meu nome é Anika. Não gosto de falar desse meu passado, tenho certeza que ninguém aqui gosta. Mas com o tempo, aqui aprendi que quanto mais falamos, mais leve ficamos. E por incrível que pareça, a primeira vez que consegui falar de verdade, sobre meu passado, foi numa sessão de hipnose. Ela foi feita pelo Dr. Adrian há três anos, quando eu estava de férias nos Estados Unidos com meu amigo na época, meu marido hoje. Eu tive uma crise, tão insana e tão forte por conta de um gatilho, que foi preciso ser internada numa clínica de saúde mental. Foi o Dr. Adrian que sabendo que vivo no Brasil, me indicou essa clínica para continuar o que ele começou lá. É com a ajuda desses profissionais, do meu marido e claro com minha força de vontade, que me mantenho de pé hoje. – Ela pausa e faz um gesto de gratidão ao médico e aos demais que estão ali. _ Para aqueles que já me conhecem e para os profissionais da clínica, saibam que essa é uma verdade pra mim incontestável. Alguns profissionais fora daqui, vêm pelejando comigo a muito tempo e depois da passagem pela clínica e pelo tratamento nos Estados Unidos, como num passe de mágica... as palavras saíram e querem continuar a sair, por isso levantei a mão. Quero deixar sair minha história, não pretendo mais guardá-la e como dizem a maioria dos profissionais daqui..., esse é o melhor lugar pra se falar. Todos estamos no mesmo barco, não há piedade, nem julgamento. – Ela faz algumas respirações, fecha os olhos por um momento, reabre, fixa num ponto neutro e continua. _ Então... Nasci na Índia. Éramos de uma casta muito pobre, meus pais tinham sete filhos homens e apenas eu e minha irmã Anaya de mulheres. Nascemos gêmeas e viemos de surpresa, meu irmão mais novo já tinha doze anos quando nascemos. Lembro que desde muito cedo, já fazíamos os serviços de casa e todas as obrigações que apareciam, tanto em casa quanto na rua, mesmo com pouca idade, tínhamos que dar conta de tudo. Todos meus irmãos tinham certas regalias, ficavam com as melhores comidas, roupas, camas..., mas minha irmã e eu mal comíamos, tínhamos direito apenas ao que sobrasse, se sobrasse. Meus pais sendo dalits, eram considerados a escória da sociedade. Consequentemente meus irmãos e eu também éramos. Conforme crescíamos, as coisas ficavam mais e mais difíceis. Apesar de sermos bem magras, também éramos bem bonitas e raramente adoecíamos. Aos sete anos, meu pai conseguiu vender Anaya e eu para um ocidental. Ele nos levou a um luxuoso quarto, nos mandou tomar banho. Nos deu vestidos simples, mas limpos. Nos colocou numa cama enorme e quentinha. Nos deu um pedaço de bolo bem generoso pra cada uma de nós e nos disse para comermos, assistirmos televisão e ficarmos ali quietinhas que depois ele voltaria para nos ver. Depois saiu e trancou a porta. Estávamos deslumbradas com o lugar, com o banho quentinho, com a cama macia e com a televisão que só víamos nas casas que limpávamos, sentamos ali e assistimos desenhos que nunca tínhamos vistos. Anaya comeu o bolo todo, eu com medo de não ter o que comer depois, dividi o bolo em três partes, comi uma e guardei as outras duas, dentro da trouxinha que tinha feito da roupa que tínhamos trocado. Em algum momento, nós dormimos e quando acordei, estava num lugar escuro, deitada num sofá que fedia urina e fezes. Eu reconhecia o cheiro porque estava habituada a limpar banheiros com aquele odor. Procurei Anaya, mas evitei fazer barulho. Quando fazíamos serviços fora, em casas de castas ricas, as pessoas não gostavam de barulho, então pensei que minha irmã já estivesse acordada e trabalhando. Saí daquele sofá fétido e fui em direção a porta, saindo por ela silenciosamente. Quase em frente a ela, havia uma sala de vidro, bem iluminada e com três pessoas dentro. Anaya estava deitada numa espécie de cama, que hoje sei que era uma maca e olhava na minha direção. Eu sacudi as mãos pra ela, sinalizando que eu já estava acordada, mas apesar de me olhar, ela parecia não me ver. As pessoas tinham caixas próximas e colocavam coisas nela. Depois que fecharam as duas caixas, dois dos três homens que ali estavam, saíram rapidamente da sala com elas. O homem que tinha colocado as coisas na caixa, começou a tirar as luvas e uma roupa que parecia muito suja e seguir em direção a outra porta. Aproveitei que todos tinham saído e fui até minha irmã. Queria saber por que ela estava me olhando estranho daquele jeito. "Anaya, o que está fazendo aqui". "Anaya, vamos para de brincadeira e fala comigo". Falei antes de chegar muito perto. Assim que me aproximei, passei a mão em frente aos seus olhos, mas ela nem piscou. Mexi em sua mão que estava suja e fora da maca e toquei seu rosto, foi quando percebi que minhas mãos mancharam seu rostinho de vermelho, mesmo assim ela não teve nenhuma reação. Achei estranho e curiosa, decidi olhar mais de perto. A cama era alta, então peguei um banquinho que havia embaixo dela e subi. Quando vi bem de perto minha irmã, ela estava totalmente aberta, cheia de sangue e vazia por dentro. Tiraram todos os órgãos dela e a deixaram ali. Eu na época, não sabia direito o que estava acontecendo, mas sabia que não era bom, sangue nunca era bom. Quando ouvi barulho no outro cômodo e a porta sendo aberta, me escondi embaixo de uma mesa que havia ali cheia de papeis. Ouvi passos e uma estranha conversa. "Quase perdemos os órgãos, você deu sonífero demais, ela quase não resistiu a retirada." "Mas resistiu e tiramos o que precisávamos". "Ficamos sem as córneas." "Ainda temos a outra." "Termine logo, precisamos sair em seis horas." Apesar de pequena, sempre fui inteligente e ágil, especialmente tendo que conviver entre os lobos que eram meus irmãos. Fiquei ali por um tempo, entendi que eles fariam comigo o mesmo que tinham feito com Anaya, decidi tentar escapar. Me esgueirando silenciosamente pelos cantos, segui o mesmo caminho que os homens das caixas fizeram. Fui me esgueirando pelo lugar que parecia um porão de uma casa e saí bem distante de onde morava. Era um lugar bonito e com bastante moradia de castas ricas. Sabia que não podia ficar por ali, conhecia muitos lugares dos trabalhos que fazia com minha mãe e irmã, então tinha certeza de que saberia encontrar o caminho de casa. E encontrei. Alguns dias depois, sobrevivendo nas ruas com muito custo cheguei em casa, meus pais tinham acabado de cremar meu irmão mais velho. Ele morreu no lugar do meu pai, pois segundo ele, as suas duas filhas haviam fugido do ocidental e meus pais não tinham mais o dinheiro para devolver a ele. Disseram que arrancaram os olhos do meu irmão e devolveram o corpo dele todo costurado como castigo pela afronta. Meu pai não quis saber o que houve conosco. Nunca perguntou por minha irmã e me bateu muito naquele dia. Após a surra, me trancou num quartinho que havia ali e me deixou lá por dois dias sem comer, sem tomar banho, sem lugar para dormir. Depois disso, me pôs pra fazer as obrigações de casa. Achei que a raiva havia passado e que agora ele me ouviria, mas não foi bem assim. Alguns dias, ele voltou do trabalho e me levou para o quarto do castigo. Nesse dia ele me violentou pela primeira vez, meus irmãos ouvindo meus gritos foram ver o que estava acontecendo, mas ao invés de me ajudarem, se juntaram ao meu pai se revezando na minha violação. Apenas Hari, meu irmão mais novo tentou intervir, mas ele acabou apanhando e sendo retirado dali. Minha mãe assistia a tudo e nunca fez ou falou nada, apenas saiu dali e me deixou no meu martírio. Depois desse dia, sempre aparecia alguém que trazia dinheiro em troca de passar um tempo comigo e quando não tinha ninguém. Meu pai ou meus irmãos se revezavam nisso. Nesses momentos, trancavam Hari no quarto ou tiravam ele de casa, pra que ele não interferisse. Isso durou até meus treze anos, quando meu ciclo passou a vir, eles me deixavam em paz nesses dias. Minha mãe sempre me monitorava pra ver se eu não estava mentindo. Eu era proibida agora de sair na rua, ficava em casa fazendo as obrigações e servindo a eles e a quem pagasse. Um dia minha mãe descobriu que eu estava gravida. Foi a primeira vez que ela olhou pra minha cara desde que eu tinha voltado. Cuspiu em mim, me amaldiçoou e me bateu muito. Contou para o meu pai e não sei qual for o teor da conversa, mas tanto ele como os meus irmãos pareciam assustados, como se uma maldição houvesse caído sobre eles ou algo assim. Passei a ser evitada por eles, como se fosse uma praga e num dia de chuva forte, eles me pegaram me deram uma surra tão forte até que eu desmaiei e me jogaram no rio Ganges. Muitos mortos são jogados lá, mas eu não estava morta, pelo menos não meu corpo. Havia uma espécie de jangada ainda quente, com um corpo que tinha sido cremado e o fogo foi apagado por causa da chuva. Ainda estava bem perto da margem, que sempre foi muito suja e poluída, peguei uma madeira e tentei remar até a margem. Não sei quanto tempo depois eu consegui. Eu estava quase sem roupa, sem sapatos, molhada e com frio. Sempre há corpos por ali, busquei algo que pudesse vestir, encontrei uma espécie de lençol que ainda não tinha sido todo consumido pelo fogo, joguei nas costas e comecei a caminhar pra longe dali. A única coisa que eu tinha certeza é de que não poderia voltar pra casa, nunca mais. No meio do frio e da chuva, alguém toca meu ombro e me assusto. É Hari meu irmão mais novo. Ele já é um homem e assim como os outros que já são casados, está de casamento marcado e no momento que me jogaram no Ganges, Hari não estava em casa. "Anika, eu sinto muito, não tenho ideia do que passou, mas saiba que tentei, eu juro que tentei." Ele diz aos prantos, não digo nada, não sinto nada. Não há nada a ser dito. Não sinto raiva dele, apenas penso que ele não tentou me defender o suficiente. Mesmo que no fundo, eu saiba que todas as vezes que ele tentava, sempre acabava saindo prejudicado. Hari me entrega uma pequena mochila, diz que vai tentar me tirar dali, mas que se algo acontecesse com ele no caminho, eu deveria correr e procurar a embaixada do Brasil e dizer que era brasileira. Eu precisava apenas mostrar aquele documento a eles, mas se eu perdesse o documento nunca teria a chance de sair dali. Eu não tinha ideia do que era, mas guardei os documentos com minha vida. Havia um passaporte com o nome de Anika Santos Devi. Na época, eu não sabia ler ou escrever, mas reconheci uma carta entre os papeis. Ele me ensinou uma história pra contar na embaixada, mandou dizer que minha mãe era brasileira e meu pai um dalit que batia nela, ela o matou e um tempo depois seus parentes a mataram. E que ela tinha mandado que eu fugisse se algo acontecesse. Muitas horas de caminhada depois, meu irmão me deixou na porta da embaixada, falou com os guardas que tinha me achado perdida na rua e que pelos documentos eu tinha nacionalidade brasileira e estava com problemas. Hari se ajoelhou na minha frente e disse: "Perdoe-me Anika. Cheguei tarde para Anaya e quase não deu tempo de chegar até você. Saiba que com o pouco recurso que tinha, fiz tudo que me foi possível pra te tirar daqui. Sei que ainda vai enfrentar muitas provações, mas sei que Durga a está protegendo e te dará forças para superar e ser feliz." Depois Hari me deu um abraço e beijou minha testa. Foi a última vez que vi meu irmão, foi a última vez que vi a Índia. Fiquei muito tempo na embaixada, repetindo sempre a mesma história enquanto eles tentavam localizar algum familiar meu na índia ou no Brasil. Não foi difícil comprovar os maus tratos sofridos, já que meu corpo tinha as provas. Por fim, uma assistente social foi designada a me acompanhar ao Brasil e me deixar num lar para crianças até que algum parente da minha mãe fosse encontrado. Não sei como Hari fez isso, mas nos documentos minha mãe se chamava Aparecida Silva Santos e meu pai Sai Pavel Devi, esse homem realmente existia na Índia, eu sei por que eles procuraram por ele, mas havia morrido há poucos dias. E a família dele negavam que tinham uma sobrinha e qualquer parte daquela história, obviamente. Por se tratar de uma casta nobre e importante, resolveram me tirar dali e não criar caso. Vivi no orfanato até os dezoito anos, aprendi a ler, escrever e a sobreviver. Fui violada outras vezes lá dentro, mas com o tempo, aprendi a me defender. – Anika faz uma pausa e dá um profundo suspiro. _Estou aqui porque depois de muitos anos me apaixonei e fui verdadeiramente correspondida, mas minha história me impedia de caminhar. Essa é minha terceira internação aqui no Brasil, não porque eu tive recaídas no meu mental ou algo assim, mas porque preciso sempre alimentar minha alma de coisas que me agregam e me façam manter o passado onde ele deve estar, distante... no passado. Quanto a hipnose, ainda nos Estados Unidos, comentei com o Dr. Adrian na sala assim que sai do transe, que me sentia diferente com relação as coisas que vivi. Na primeira sessão, ele fez comigo uma regressão a momentos difíceis do meu passado. Eu estava lá, mas era como se eu visse tudo de uma forma diferente, com um novo significado. Meu passado ainda dói muito. Ainda mexe comigo, mas não me domina mais. Eu não me culpo mais por escolhas que não foram minhas, por situações em que não havia nada que eu pudesse fazer. Eu posso dizer com certeza que, nesse momento, eu aceito o meu passado. Como diz a Dra. Adriana, acolho minha criança ferida, mostro a ela que ela está segura, guardo ela com todo meu amor no meu coração, mas não permito mais que ela conduza o ônibus da minha vida. Tudo na clínica me ajudou e me ajuda muito, mas a sessão de hipnose me ajudou muito com a ansiedade, com meu vício do cigarro e a rever outros traumas. Pode parecer bobagem, mas nos primeiros três dias, já sentia muita diferença. Inclusive, esse é meu primeiro depoimento desde que cheguei aqui, há três anos. Finalmente, me sinto segura ao falar com vocês agora.







Durga, é uma das figuras mais importantes da Mitologia Hindu ou Indiana, ela é considerada a mãe do Universo, representando a força que gera e concretiza a vontade divina e manifesta todas as formas pelas quais a vida se expressa

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Durga, é uma das figuras mais importantes da Mitologia Hindu ou Indiana, ela é considerada a mãe do Universo, representando a força que gera e concretiza a vontade divina e manifesta todas as formas pelas quais a vida se expressa. A palavra "Durga", em sânscrito, é traduzida como um forte ou local que é difícil de cair. Por esta razão, Durga é sempre venerada como Deusa da Proteção.

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