Titubeou; parecia um rato de laboratório perdido no labirinto de prateleiras, toners e materiais de impressão. Suas mãos tremiam enquanto fazia o vai-e-vem, encurralado pela hemorragia do corpo estirado no chão. Da boca do morto: muito sangue.
Rodrigo mordeu os nós dos dedos para controlar a tremedeira. Deu trégua ao sapateado repetitivo e respirou fundo. O relógio desautorizava hesitações longas. Precisava tomar decisões inteligentes e ajeitar aquilo o mais rápido possível.
O teto era tão elevado que as prateleiras chegavam apenas à metade da altura do ambiente, contudo, a amplitude era insuficiente, sem muito espaço para andar.
Rodrigo tinha abandonado a cena do crime nº 1 possuído pela urgência de encontrar Norberto e matá-lo.
Agora, como o homem já estava morto, o foco ali era arquitetar um plano. Era necessário relacionar o primeiro com o segundo crime, como se fosse um homicídio seguido de suicídio. Enganaria a polícia? Como criar a conexão entre os dois assassinatos e sair ileso?
Desastrado, ele esbarrou com o ombro num chumaço de folhas e quase derrubou-o sobre o corpo. Seu pensamento estava longe, na dúvida se havia feito mesmo um bom contrato vitalício de cumplicidade. Graças ao pesado furador de papel sobre as folhas, elas permaneceram onde estavam.
A tremedeira continuava e a palidez da pele anunciava um desmaio por conta do descontrole da situação. "Ajustar" a segunda cena do crime seria impossível sem sabotar.
Alguns minutos antes disso tudo acontecer, ele recebera um desabafo de May; estava claro: ela desejava um castigo dos bons ao marido.
E o que eu faço agora, porra!? Estou encrencado até o gargalo... Tem sangue pra caralho!
A conhecida arma — uma glamorosa RT-889, calibre .38, fabricação da Taurus, com acabamento fino e desenho clássico — descansava na mão da vítima, próximo da boca escancarada. Um breve flashback tomou conta do pensamento de Rodrigo: aquela arma já fora apontada à sua fuça sob ameaças mortais.
Com a cara toda enrugada ele se aproximou e observou Norberto jogado. O tiro fora um desastre; por algum motivo a bala ficara alojada no topo da cabeça.
— Só vai servir se a bala chegou ao crânio — sussurrou com seus lábios secos.
Depois de fazer uma careta, abandonou Norberto e subiu as escadas em busca de ar renovado. Deparou-se com a bagunça do escritório. Olhou tudo ao redor. Nada fazia sentido. Seus olhos perceberam a foto no chão. Como a situação exigia cautela ao extremo, surrupiou um bloquinho de Post-it numa das mesas, arrancou uma folhinha e valeu-se da parte grudenta dela para evitar de deixar suas digitais. Observou a imagem por alguns instantes com a testa franzida e, segurando a foto com cuidado, ele desceu pela segunda vez para o silêncio sufocante no almoxarifado da Editora Hora de Ler. Suava igual porco antes do abate. Desta vez: gravata ausente de seu vestuário, até porque, senão, ela poderia vir a ser uma forca: Adeus mundo cruel, porém, ele estava ali para forjar um suicídio em vez de cometer um.
Aproximou-se do corpo, ficou de cócoras e, jeitoso, arrastou a foto para a poça de sangue rastejante debaixo de Norberto. Descolou o post-it e descartou-o na lata de lixo.
Com as mãos na cintura passou os olhos naquela cena. Olhou, olhou, coçou a cabeça. Esfregou os olhos. Sentou no chão encostando-se na parede fria. Depois levantou-se. Andou de um lado para o outro. O ratinho encontraria a saída do labirinto? Postou-se de frente ao corpo pela enésima vez. Passou pelo cadáver e rumou na direção da escada. Desabou no terceiro degrau. As mãos enfiadas cabelo adentro, despenteou-os. Encarou a parede, desviando o olhar do cadáver.
As opções pareciam óbvias demais: a) abandonar aquele plano absurdo e cheio de buracos, e: b) chamar a polícia.
Levantou-se, desceu os degraus. Olhou Norberto sem vida mais um pouco. Retomou o movimento de barata tonta e gastou dois minutos inteiros — era desperdício demais!
E como se tivesse encontrado a solução do mundo dentro do bolso, ele sorriu. Poderia fazer mais, então, averiguou as possibilidades. Possuía dois objetos a favor dele: o celular e a chave. Isso poderia ajudar muito. Precisava deixar as impressões digitais da vítima no aparelho, no entanto, precisava limpar as suas, por isso valeu-se de uma flanelinha de limpeza numa das prateleiras. Então agiu.
— Caralho! — gritou. Quase triscou no marido de May.
Sua testa pingava suor. Jamais poderia ser encontrado pela polícia banhado pelo sangue da vítima brilhando como letreiro de motel barato. Impossível ser tão otário igual aquele imbecil foi...
Recuperado, atentou-se à tarefa: manipulou a mão livre de Norberto e pressionou os dedos mortos no celular surrupiado e largou-o ali. Repetiu os movimentos com o segundo objeto: a solitária chave metálica do apartamento pertencente à primeira vítima. Limpou-a, segurou com a flanela numa das extremidades, carimbou os mesmos dedos sem vida e a depositou no bolso da calça do pobre coitado — longe de ser pobre; muito menos coitado — e largou a mão no chão.
Afastou-se com a cabeça inclinada, imitando um cachorrinho atento ao seu dono e avaliou o próprio trabalho:
— Parece perfeito.
Devolveu a flanela onde estava. Respirou fundo por cinco vezes; olhos fechados e a cabeça mirada para o teto. Abriu os braços e inspirou pelo nariz, devagar, e expirou com a boca emitindo um assobio. Sorriu de braços abertos. Seus olhos se encheram de lágrimas. Sua caixa toráxica expandia-se com o ar puxado pelas narinas. Deu um giro discreto no próprio eixo. Fim da perseguição. Início de sua era de paz? Os próximos dias iriam dizer. Caso tudo desse certo e a polícia desconhecesse sobre seu envolvimento com aquele pandemônio desgraçado ele poderia experimentar a paz...
Tarefas terminadas.
Subiu as escadas respirando melhor. Quase tropeçou. Foi até o escritório editorial. Deixou o almoxarifado sem olhar para trás.
Os ombros estavam pesados demais. Sua mão pareceu pesar uns três quilos ao sacar seu celular do bolso. Inalou bastante ar pelas narinas e discou 190.
A primeira vez tinha sido pior, contudo, agora, com mais traquejo e experimentando a liberdade chegar a conta gotas, contaria mais uma de suas maiores mentiras para a polícia.
Depois, claro, falaria com May sobre aquilo. Ela deveria ser a primeira a saber depois dos policiais.
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Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]
Mystery / Thriller(LIVRO COMPLETO) | VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS2020 | Categoria: Mistério & Suspense Do que você seria capaz para publicar seu livro? O jovem escritor, Micael - consumido pela ambição de ter seu livro aceito pela editora-chefe da Hora de Ler -, aparece...