34. May

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QUINZENA PRECEDENTE AO DIA DOS CRIMES

Após a descoberta, os dias de May jamais foram iguais, pois, estavam cada vez mais sufocantes e as crises de ansiedade acometiam-na com mais frequência e intensidade. Até para respirar estava difícil, era como se tivessem enfiado à força duas bolinhas de algodão nas narinas dela.

Desde o dia que ficara petrificada diante o computador, ela entrou em stand-by. Não conseguiu inventar nada, não conseguiu ensaiar o que dizer e nem deu tempo para encenar movimentos regulares e normais de esposas felizes e tranquilas com seus casamentos. Norberto chegou em casa naquele dia com a mão no bolso. May não saberia dizer se ele sempre andava assim, mas neste caso ela tinha a certeza de que ele estava segurando a chave no bolso com bastante firmeza. Está receoso de que ela encontre um furo secreto e escorregue pela perna da calça? Poderia ser, como poderia não ser, mas a verdade era: Se de alguma forma a chave escorregasse, perguntas viriam à tona; May não aguentaria. Inexplicavelmente, ela própria torceu para aquilo não acontecer.

Ele foi beijá-la. Depois perguntou se ela estava bem, se havia melhorado. May resevrou-se ao direito de apenas balbuciar algumas palavras: "Bem", "Aham", "Ótima"...

Ele: "Fez café, está um cheirinho."

Ela respondeu: "Caiu."

E ele: "O quê?"

E ela: "A xícara."

Ele: "Não entendi... Caiu uma xícara de café?"

Ela: "Aham."

A conversa entre os dois parecia um diálogo escrito por um autor preguiçoso que não queria ou não estava interessado em discorrer um diálogo arrebatador e cheio de dualidades.

— Deixa eu ver se entendi: Você deixou uma xícara de café cair no carpete? — quis saber ele, dando mais força à sua expressão incrédula.

Exatamente. E a xícara se despedaçou que nem eu...

— É. Deixei... Ando...

— Anda...?

— Meio... desastrada...

— Amor, está tudo bem, mesmo? — Norberto se aproximou de novo. — Venha, é melhor você deixar o computador de lado e ir para a cama. Quer que eu prepare o jantar?

— Pode ser — respondeu ela, seca.

— Espere eu tomar um banho que já preparo algo, está bem?

Ela sentiu ele se afastar. Não olhou para trás. Seu corpo permaneceu rígido. Aliás, desde o acidente com a porcelana, May era feita de puro estupor, que aliás, custou a passar.

Agora, quando pôs-se de pé e caminhou até o quarto, sentiu suas juntas reclamarem, parecia que suas articulações eram feitas de ferro (e sem nenhum óleo lubrificante para amenizar o atrito).

O estado fúnebre dela resultou em protelações severas e findou num total de "zero" projetos finalizados. As coisas simplesmente estacaram. Tudo lhe tirava a paciência! Maldito ar-condicionado!, gritava ela quando sentia calor. Maldito ar-condicionado!, gritava ela quando sentia o vento frio demais. E os sintomas de irritação-aguda tornavam-se piores dentro de casa.

O dom de espatifar coisas havia evoluído: da xícara aos pratos (e até um vaso de flor na sala, entrou na dança do "quebra-quebra" em alguns picos de raiva). O espelho do banheiro escapou por pouco dos seus acessos irados, pois o soco direcionado a ele foi desviado, no último centésimo de segundo à parede; e rendeu a ela uma mão rechonchuda de tão inchada.

Norberto não notou minha mão vermelha e machucada ou não se importou?

Sexo? Nem pensar! "Vira esse pinto gay pra lá" dizia a cara dela quando Norberto chegava perto dela, roçando, pedindo atenção. Neste momento ficava o dilema: Ele demonstrava interesse sexual por obrigação? Ou por que era bissexual? Não importa! Isso não justifica a traição!

Não sabia se era paranoia dela, mas, ela podia jurar que era possível sentir o alívio dele quando ela dizia que estava com a tão usual e clichê dor-de-cabeça; ou dor de barriga (chegou até a usar a palavra diarréia para brochá-lo de vez — mesmo que ele estivesse de pau duro pensando em Nicolas); ou menstruada; ou com enxaqueca; ou "Não vai rolar; garganta inflamada"; "Ânsia de vômito; "Vi uma notícia muito ruim no jornal hoje e isso mexeu comigo"...

Virava-se para o outro lado decretando: Hoje NÃO!

Nem hoje, nem amanhã, nem semana que vem... Nem nunca!, se dependesse do nojo crescente de May em relação ao sexo com seu próprio marido.

Era impossível que Norberto não tivesse notado o estranho comportamento dela. Quinze dias sem transar estava sendo o recorde do casal; e ele não era um (completo) idiota para acreditar nas mentiras que ela contava a fim de banir o gozo noturno. Ambos estavam fingindo por dias que nada estava acontecendo, e estavam agindo como se o casamento estivesse sendo regido por uma paz plena.

Contudo, a verdade era mais dura; para ambos.

Até quando suportariam todo aquele fingimento de casal feliz? Até quando resistiriam em sucumbir à névoa opressora que havia se instalado e grudado em seus corpos durante dias?

A resposta: Exatamente no dia 21 de fevereiro de 2017 às 18h30, que toda a merda começou e desandou de vez.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora