6 MESES ANTES DOS CRIMES
A ambulância sacolejava. May era assistida pela enfermeira apesar de não estar tecnicamente ferida, só queria ser levada para casa e pôr os pensamentos bagunçados no lugar. Desejava apagar num sono profunda agarrada ao seu herói; seria bom poder suspirar aliviada no peito dele.
Entretanto, ilusão. No seu quarto, finalmente deitada na cama, de banho tomado e alimentada (uma maçã-verde foi sua janta), encostada em seu amor, é que tudo começou a ficar "perturbado". Ele começou a fazer perguntas demais, querendo saber como é que tudo aquilo havia acontecido, e em detalhes... "Conte tudo, tudinho! Preciso saber; foque nos detalhes!"
Narrar o episódio aterrorizante todinho? Reviver aquilo? Só queria paz. Eu preciso descansar!
— Nem quero lembrar — respondeu, pela terceira vez.
Recebeu um abraço forte dele, porém, não acolhedor, uma espécie de esmagamento carinhoso.
Por que é que ele quer me pressionar com essa história? Eu já estou bem... Será que ele não entende que eu preciso esquecer isso?
— Amor, eu sei, foi uma loucura; traumatizante para nós dois, mas me deixa descansar, pôr os pensamentos no lugar. Eu prometo, está bem? Conto tudo para você ao longo dos dias. Agora eu não estou com cabeça, mesmo...
Irredutível, ele disse:
— Estou desesperado...
— Estou vendo!
— Você precisa me contar!
Ela se desvencilhou do aperto dele, e encarou-o.
— Eu já disse que vou contar, mas é que tudo está tão confusão na minha cabeça agora. Você deveria me acalmar, sabia?
Norberto não pregara os olhos, enquanto que May acabou adormecendo de tanto cansaço.
Ela chegou a acordar aos gritos de madrugada, emergindo de um pesadelo.
— Calma, estou aqui. Eu estou aqui...
Norberto passou a hora seguinte tentando fazer o tremor dela ir embora.
Os efeitos do calmante acabaram e ela foi transportada à força do torpor para a realidade. A ficha havia caído!
Ela não sabia, mas estava tendo uma crise de pânico; e custou a passar.
— Foi horrível! Foi horrível! — Ela gritava no ombro molhado de lágrimas dele.
— Desabafe — disse ele, retomando o interesse na conversa.
Aos prantos, ansiosa e tremendo, ela contou de modo impreciso sobre o que lembrou.
No final das contas, o relato ficou cheio de buracos. May tinha ficado em dúvida em vários pontos: não sabia quem havia saído por último da Editora Hora de Ler antes dela; não lembrava de ter ouvido o alarme sendo liberado. Não sabia se algum funcionário havia deixado o portão aberto; não conseguiu descrever como foi enfiada dentro do carro ou se tinha alguém na rua; nem ao menos sabia dizer se os sequestradores haviam-na machucado no cativeiro.
Do nada, sua mente tornou-se aleatória e sem certezas.
— Como é mesmo que chamam aquele lugar?
— Desmanche, querida — disse ele, sorrindo e cheirando os cabelos dela. O sorriso de Norberto era mais satisfatório do que de contentamento, contudo, May estava muito fora de si para reparar nisso.
Em sua, a madrugada rendeu várias horas de crises chorosas. Teve um momento em que Norberto saiu em disparada procurando o aparelhinho portátil de aferir a pressão arterial.
— Dez por treze. Está alta. — Não estava apenas alta. Talvez por falta de conhecimento, os dois nem imaginavam o risco iminente de um infarto fulminante levar May embora.
Ela se esforçava até para chupar ar pelas narinas úmidas.
A salvação? Um copo de água filtrada com açúcar. O segredo? Calmante misturado à solução adocicada.
Depois de mais meia hora, aferiram a pressão pela quarta vez e, finalmente: 11/8.
May dormiu como feito um anjo enquanto o sol despontava lá fora.
Norberto sentiu-se mais calmo e dormiu de conchinha com ela.
*****
Mais uma vez Norberto obteve sucesso no que queria. O depoimento de May para polícia, na tarde seguinte, foi considerado "confuso", porém, devidamente aceito pelo grande trauma.
Norberto respirou aliviado. A polícia não seria levada a Rodrigo; pelo menos não por conta do depoimento de May. Alegrava-o o fato de apenas ele deter este segredo, além do próprio Rodrigo.
Será que poderia usar isso ao seu favor no futuro?
*****
May precisou se afastar da editora por um tempo. Fugiu dos repórteres locais. Iniciou um tratamento psiquiátrico devido às crises que ainda estava sentindo.
Norberto apoiou-a nas decisões, sempre dizendo: "Quero o melhor para você, amor". Enxugou com compaixão os dela quando ela saiu do consultório do psiquiatra sabendo que tinha Síndrome do Pânico e Depressão, e segurando receitas de medicamentos de tarjas vermelhas, e pretas. Sequela do episódio traumático de um caso policial esquisito.
Nem mesmo May desconfiou sobre como o desfecho da história pareceu conveniente demais. Afinal, a própria vida às vezes parece inverossímil, como nos livros e nas séries de televisão. Importava agora o fato de ela estar sã e salva, e até a ideia desesperada de instalar câmeras de segurança na Editora Hora de Ler, foi esfriando e minguando conforme o tempo foi passando.
May tomava os medicamentos religiosamente, e já se sentia apta a voltar ao trabalho em menos de um mês depois do terror, porém, estava claro que ela seguiria com uma vida completamente afetada.
Teve inúmeras recaídas. Sua ansiedade parecia vencer os remédios, contudo, mesmo tropeçando, ela queria se convencer de que estava mais forte. E se o sequestro (que nem de longe parecia tão traumatizante quanto os próprios que ela já escreveu) representasse um capítulo inteiro na sua vida, ela estava disposta a arrancar as páginas e queimá-las.
Seguiria escrevendo sua própria jornada do mesmo modo que um autor iniciante sai de um curso intensivo de escrita criativa.
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Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]
Mystery / Thriller(LIVRO COMPLETO) | VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS2020 | Categoria: Mistério & Suspense Do que você seria capaz para publicar seu livro? O jovem escritor, Micael - consumido pela ambição de ter seu livro aceito pela editora-chefe da Hora de Ler -, aparece...