27. Rodrigo

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6 MESES ANTES DOS CRIMES

Rodrigo não queria ter gritado tanto ao telefone, mas foi inevitável. Desligou dando um soco no balcão que dividia sua pequena cozinha e a sala. Foi até o aparador onde guardava as garrafas de suas bebidas favoritas e serviu-se de uma dose de uísque; desceu rasgando a garganta. Tossiu com força para se livrar do engasgo. Rosto vermelho, veias saltadas.

Largou o copo de qualquer jeito no balcão, depois deu um safanão nele e o viu espatifar no chão. Correu ao banheiro e envergou-se na pia. Tossiu a ponto de babar.

Dez minutos depois, lutando para não vomitar, desabou no sofá da sala, sem acender a luz, preferindo ficar na meia-escuridão. Pegou o controle do ar-condicionado e diminuiu dois graus. A luz mais próxima vinha da janela do apartamento do outro bloco.

Observou as silhuetas das pessoas por algum tempo. Eles parecem tão normais. Tão livres. Tão isentos de culpa.

Mesmo deitado, Rodrigo era uma bomba-relógio. Levantou-se. Para se livrar da agitação dentro de sua cabeça ele pegou o celular, conectou a sua moderna caixinha de som via Bluetooth e abriu o Spotfy. Qual playlist tocar? Ajudaria? Difícil, pois, a tensão nas alturas fazia o autocontrole se esvair por suas orelhas como se fosse líquido.

Não estava funcionando. O uísque fez seu estômago queimar. Não conseguiu se concentrar nas músicas que tocavam uma atrás da outra sem interrupções. Em vez disso, seu cérebro começou a exibir, em tela cheia, slides da infância dele no modo aleatório, traindo-lhe e causando taquicardia.

Imagens do passado: Seus pais, seres humanos simples que tinham como único foco a sobrevivência deles próprios e da prole: dois filhos; um casal. Há duas décadas o pai e mãe haviam feito de Iperó sua morada e trabalhavam duro como caseiros num sítio da pequena e afastada cidade.

Sentado no sofá com as mãos na cabeça, Rodrigo era só lamentações: Por quê? Por que isso agora?! As recordações vieram com mais força: a casa simples (que nem era deles) na imensidão do sítio; as dificuldades financeiras; as vontades latentes, pulsantes... nada naquela época era pensado a longo prazo, afinal, havia questões mais urgentes para resolver, todos os dias. Era um luxo poder programar qualquer coisa a longo prazo naquela família; as necessidades imediatas clamavam por serem supridas logo... Entretanto, demonstrando bravura e determinação, o pequeno Rodrigo traçou um plano a longo prazo; como já havia adquirido o hábito de ler desde aos oito anos de idade — estando à frente dos pais analfabetos por anos-luz! — ele juntava suas moedinhas numa lata velha de Nescau e almejava comprar tantos livros no futuro que formaria uma biblioteca em casa (não esta, outra casa, a casa deles, com um quarto só para ele!). Contudo, a principal necessidade fisiológica e antagonista da vida dos miseráveis, sempre dava um jeito de atrasar sonhos. A mãe dele, de vez em quando, mais para o "final do mês" (de todos meses) contava uma estória curiosa sobre precisar "fazer um empréstimo" das moedinhas que ele vinha guardando para fazer aquele molho de salsicha que ele tanto gostava.

Róti dógui no jantar hoje! Eba! — Ela era uma boa contadora de estórias. O dia do "róti dogui" era uma festa para ele e para a irmã mais nova. Não reclamava de emprestar suas economias, afinal, quem conseguia se concentrar numa boa história infantil de Monteiro Lobato ou de Maurício de Sousa com o estômago roncando?

Precisava arranjar uma solução. Portanto, vez ou outra o pequeno Rodrigo entrava no corredor das prateleiras mais afastadas da biblioteca da escola e enfiava um gibi rapidamente em sua mochilinha empoeirada, dessa forma, garantiria alguns títulos para sua futura biblioteca particular sem precisar sacrificar seu pão com salsicha no jantar.

Rodrigo foi crescendo e quando entendeu o significado dos "róti doguis" percebeu que teria que enfrentar um universo muito duro e cruel para poder realizar seus desejos. Assim que pôde, migrou para Sorocaba, onde ao menos as ruas eram pavimentadas e suas roupas pudessem estar mais livres do pó vermelho grudento. Trouxe consigo o amor aos livros, pois isso não havia sido deturpado pela vida difícil.

Fugindo do trauma causado pela palavra "pobre" ele conheceu a palavra "ambição". Quando já estava formado em Letras e pensando em se especializar em Mercado Editorial (se a grana desse) recebeu a oportunidade de fazer uma entrevista e compor a equipe da nova editora da Cidade de Sorocaba. Largou a vidinha de livreiro (leia-se repositor e faz tudo) na minúscula loja Nobel do velho Sorocaba Shopping e se jogou nas suas próximas atividades profissionais. Quem era aquela mulher? Deparou-se com a nova empreendedora, e que ainda por cima era escritora, e se encantou. Tecia elogios a ela sempre que podia e em seguida já soltava alguma frustração pessoal. Era incontrolável. Não conseguia parar de se comparar à sua hipotética versão feminina, com a diferença de que ela já era uma pessoa agraciada pelo sucesso, e ele não.

Foi convivendo e trabalhando com May, dia após dia, que a ambígua palavra "ambição" tomou o significado mais ácido na vida dele. Rodrigo conhecia toda a trajetória e história de vida dela, May era um case de sucesso no mundo dos livros, porém, em vez de ela servir exemplo e de combustível para ele próprio se debruçar nos objetivos e se dedicar em evoluir para alcançar o sucesso, ele optou por um atalho, porque o reconhecimento demorava demais para chegar, ansiava por ter sua própria editora de sucesso, ser o "dono da porra toda", não precisar de aprovações de ninguém, até mesmo trabalhar fora, em outro país, quem sabe?, expandir sua carreira em outro nível, e preferiu seguir por meios obscuros de usurpar a vida daquela mulher "de sorte".

Rodrigo esfregou as palmas das mãos na cara, voltando ao presente. Seus olhos estavam melhorando da vermelhidão. Se soubesse que seria tão castigado por uma série de flashbacks sobre sua própria vida teria adiado um pouco mais.

O pressentimento ruim lhe subiu pela garganta junto ao álcool de novo. Engoliu. Perguntou-se se Norberto havia notado seu desespero.

— É claro que sim! Ele não é um otário! — disse por cima da música. Sem paciência, foi até a mesinha de centro e desligou a caixinha de som, depois se jogou no sofá de volta.

O plano seguiria dando certo? O menino que roubara gibis para ler na infância, tinha se transformado no homem sem caráter que agora roubava uma editora inteira. Eram 370 mil reais envolvidos na jogada. Jamais poderia ser descoberto como o mandante do sequestro. Aqueles imbecis precisavam ter especificado o valor completo? Precisavam me ligar justo naquela hora? Não entenderam que eu poderia estar ocupado ou coisa parecida? E aquela mensagem, meu caralho?!

Poderia acabar sendo vítima de sua própria ambição, porque acabou contratando os capangas mais "baratos" que encontrou para não ter que dividir tanto assim o dinheiro. Deu um tiro no pé?

Rodrigo sobressaltou-se quando seu celular tocou. Sentiu sua pressão cair ao ver o nome de Norberto no visor. Vai dar muita merda! Sua mão suada deixou as costas do aparelho úmidas. Quando, por fim, decidiu atender ao telefonema, a chamada cessou. Porra, era para eu ter atendido! Precisava da segunda chance.

Fitou o celular por mais alguns segundos, porém, mal pôde respirar mais aliviado e a porcaria começou a chamar de novo. Agora sim, tinha que atender sem aumentar ainda mais as suspeitas sobre si.

— Oi, estava no banheiro, desculpe — disse. O celular tremendo na orelha. A desculpa havia chegado cedo demais na conversa. — Está tudo bem? Alguma novidade?

— Não! — ouviu Norberto dizer. — Estou enlouquecendo aqui, sem poder fazer nada... Entende?

Entendo, também estou aqui sem saber o que fazer.

— Imagino. Mas olha, você precisa ficar calmo. A polícia vai resolver — profetizou, desejando o contrário. Quase cruzou os dedos.

— Sim, estou contando com isso. Não conseguirei dormir hoje a noite...

O silêncio entre os cabos telefônicos foi estranho, para ambos.

— Tem... algo que eu... possa fazer? — perguntou Rodrigo, a contragosto.

— Sim, por isso liguei para você. Preciso conversar. Preciso buscar algumas pistas sobre o paradeiro da minha esposa. Quero ajuda. Eu... — Soluços. — Eu não posso permitir que alguém faça mal a May.

Sem ter outra opção, Rodrigo pegou a chave do carro e saiu em disparada, invejando, além do sucesso de May, a família tranquila que jantava na mais pura harmonia.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora