04. May

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19 DIAS ANTES DOS CRIMES

02/02/17 - quinta-feira, 09h01

May, quase todos as madrugadas, acordava banhada em seu próprio suor. Os fantasmas daquele dia fatídico ainda a atormentavam. Depois do episódio regado aos picos de tensão pelos quais passou ao ser sequestrada, ficou impossível manter a chamada Vida Normal. O sequestro deixou marcas e agora May tinha ataques de ansiedade mais frequentes. Fora diagnosticada com ansiedade generalizada. Obrigada, fez votos de amizade duradoura junto ao seu psiquiatra e firmou um pacto com suas drogas. May passou a roer unhas durante as consultas e adquirira o mal das pernas inquietas. Às vezes se esforçava para manter uma conversa coerente.

— Eu estou lidando bem com isso — disse ao seu psiquiatra na última consulta. — O problema é que eu sou uma workaholic! Simplesmente não consigo largar tudo! É normal a ansiedade aumentar um pouquinho! O senhor vai ter que me entender!

E o médico entendeu que ela precisava de doses mais severas de psicotrópicos. Em algumas semanas as doses do Rivotril e do Pondera já haviam dobrado.

— Como andam as coisas com o seu psicoterapeuta? — O psiquiatra sempre perguntava. E ela fazia um resumo de uma palavra que pendia mais ao seu favor:

— Evoluindo.

Mas a verdade era:

"Isso que está me dizendo significa que você está chegando ao seu limite, May"; "Você não faz a menor ideia de quando foi a última vez em que tirou férias, não é?"; "As noites insones continuam?"; "E os altos níveis de irritabilidade?"; "E o foco? Como anda o problema de déficit de atenção?".

Numa das sessões o psicólogo sugeriu retornar às aulas de pilates porque ela própria havia se queixado sobre seus músculos terem virado pedra.

E lá estava May, nos parques e praças da cidade, correndo com suas roupas de tecido sintético. De vez em quando interrompia os exercícios e se sentava, suando demais, num dos bancos espalhados pela pista de caminhada da praça do Campolim. De novo aquela sensação a acometeu feito um relâmpago. De uns tempos para cá este mal vinha mais prolongado, intenso e "íntimo" — como aquele amigo que aparece só para dar um "Oi" e acaba filando uma garrafa inteira de vinho depois do jantar.

No consultório:

— Ontem mesmo eu tive mais uma vez.

O psiquiatra começou a escrever num bloco de receituários em branco. Destacou a folha e entregou a ela. A náusea lhe subiu quando descobriu o nome do monstrinho que crescia dentro dela. Segundo o CID (Classificação Internacional de Doenças) escrito na receita ela sofria de Síndrome do Pânico.

— Acho que o senhor pode estar sendo meio precipitado...

— Seria interessante você tirar um tempo para si, desligar o botão holic — disse o psiquiatra franzindo os lábios que sumiram detrás do bigode. — Estou falando sério.

May virou um zumbi dentro de casa nos próximos dias. Seus passos carregavam o peso do tédio. Deitada no sofá, imóvel e mais preguiçosa que um filhote de cachorro depois do banquete de ração, ela sussurrou para o teto:

— Então é assim que é a morte?

Passou meses numa rotina distante das adversidade editoriais.

Um dia, nua, diante do seu reflexo no espelho, avaliou-se:

— Você está de parabéns, May, seguiu as recomendações direitinho; pele hidratada e, olha só, rosto mais coradinho; corpinho está em forma; cabeça funcionando bem. — Todos esses auto-elogios só tinham um objetivo: demonstrar aos profissionais que estava bem e levantar a bandeira da descontinuação medicamentosa.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora