01. May

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9 ANOS ANTES DOS CRIMES

Desde a infância já era capaz de preencher uma folha de papel inteirinha do seu caderninho com a letra gorda e desenhada com sucintas aventuras de pequenos animais. Mostrava aos pais e eles ficavam maravilhados com a criação. Porém, foi há apenas nove anos que se categorizou como escritora. Estava tomando cafés nas lanchonetes, portando blocos-de-notas e anotando ideias nos cadernos, fumando cigarros, bebendo drinks e filosofando profundamente sobre as questões árduas e os prazeres da vida? Nem de longe, passava a maior parte do dia sentada detrás duma mesa grande na recepção de uma metalúrgica, vestida num uniforme verde musgo e ostentando um crachá: "MARIANE – Recepcionista" como se este fosse a medalha conquistada na competição de "Melhor desvio de carreira".

— Boa tarde?

— Olá, boa tarde, senhor — disse ela, distraída pela tela do computador, ruborizando e desculpando-se em seguida com o olhar. Absorta, não reparou a chegada do homem de terno caro. — Posso ajudar?

— Pode. Me chamo Amadeu. — O nome já explicava tudo.

Seu coração gelou na hora. Distraíra-se no pior momento. Não era qualquer um na sua frente: era o Sr. "Amadeu-importante-pra-caramba", único banqueiro (e também acionista) que poderia aplicar dinheiro na empresa doente das pernas. A gafe fê-la desperdiçar a chance de esbanjar sua eficiência de imediato.

Mariane suspirou, teclou o ramal do sr. Álvares com pressa, fitou o aparelho PABX, ajustou o microfone, parecendo uma ótima cobradora de telemarketing e aguardou o desesperado presidente da empresa atender.

Quando o próprio dono da empresa foi buscar o ricaço na recepção, Mariane pôde respirar melhor e se permitiu abandonar seu posto por dois minutos. Precisava ir ao banheiro jogar água na testa. Tomou cuidado para não borrar a maquiagem diária e detestável. Contudo, Mariane mal pôde enxugar o rosto direito e o telefone já estava berrando lá na mesa parecendo um bebê faminto e cagado. Quase tropeçou nos próprios seus saltinhos scarpin. Não chegou a tempo. O maldito telefone cessou o choro quando ela apertou o botão.

O registrador mostrava: ALVARES. Uma gota de suor brotou no seu coro cabeludo. E agora? Esperava outra ligação dele? Deveria retornar? Caramba, seu chefe estava acompanhado do endinheirado do Estado de São Paulo, o qual poderia içar a empresa do fundo do poço chamado: recuperação judicial, e havia chamado ela justo nos míseros dois minutos de respiro.

Sem tempo para pensar, e já agindo: saiu aos pulinhos. Chegou à maior sala de reuniões. Haviam muitos homens engravatados em volta da mesa oval. Percebeu que a reunião não havia começado, pois o pessoal do TI ainda estava dando foco no Data Show. Sorte a dela. Respirando fundo, ela deu duas batidinhas na porta de vidro e entrou, se tornando o foco.

O sr. Álvares a fitou e manteve-se calado. Mau sinal. Então, ela precisou perguntar:

— O senhor deseja alguma coisa?

— Sim — disse ele, curto e grosso. — Não me repasse nenhuma ligação. Estaremos em reunião nas próximas quatro horas. — Mariane engoliu em seco. — E já que está aqui, providencie o coffee break para daqui duas horas.

"Por favor" não existia. Era sempre: "Veja na minha agenda se eu tenho reuniões na próxima semana", "Traga café", "Traga água", "Providencie uma viagem até o Rio", "Lembre-se da hospedagem no nordeste", "Ligue para o fornecedor amanhã", e agora: "Providencie o coffee break para daqui duas horas". Só faltava: "Não respire". E para salvar seu couro, seria bom anotar num post-it imaginário e colar em sua testa que suava insistente naquele dia: "Não atrapalhe a reunião".

Após servido o coffee break — e sem nenhum desastre envolvendo xícaras espatifando-se no chão, e pães de queijo rolando pelo carpete da sala —, Mariane pôde respirar e oxigenar seu cérebro. Concentrou-se novamente no que havia a distraído logo mais cedo: sua nota do ENEM, Exame Nacional do Ensino Médio. Mais calma ela analisou as notas de corte de alguns dos cursos nas diversas faculdades da região, as quais faziam parte do ProUni, Programa Universidade para Todos, do governo. Estava mais do que na hora de recuperar o tempo perdido em relação aos estudos e à formação profissional.

No meio da agitação — e demissões — na empresa nos últimos dias, ela merecia uma recompensa. E como ela já estava executando dois serviços ao mesmo tempo: recepcionista e personal secretária, uma bolsa de Secretariado Executivo Bilíngue poderia ajudar na sua promoção, afinal, mesmo a empresa capengando, o presidente dela necessitava de uma secretária-faz-tudo. E por que não ela? Seria uma boa onda no meio daquele tsunami? Até poderia ser, contudo, para perturbar a sua paz, ela própria fez a besteira de espiar se sua nota a permitiria cursar Letras, a sua real vontade.

E "merda", dava!

*****

A semana seguinte foi intensa. Os burburinhos na empresa tornaram-se mais altos, enquanto o sr. Álvares tornou-se mais calado.

Mariane se muniu de muita coragem para estar ali, ocupando os minutos preciosos do chefão que tinha uma bomba nas mãos. Explicou a ele sobre a boa nota no ENEM e a possibilidade de cursar Secretariado, objetivando o cargo de secretária efetiva dele. Anunciou que já havia feito a escolha no site do ProUni e estava determinada em executar suas atribuições. Mariane usou toda sua articulação de escritora, escolhendo as melhores frases e palavras. Os olhos inexpressivos do velho eram um enigma, e aquilo estava a matando por dentro.

Após dois minutos só ouvindo, o sr. Álvares franziu o cenho e os lábios, deixando-os ainda mais enrugados, e foi direto:

— Eu lamento. Agradeço sua disposição, mas não será possível efetivá-la. Vendi a empresa, então, depois do comunicado oficial de hoje, todos serão desligados da companhia.

Ela caiu para trás numa outra dimensão.

Então, agora, me diga o que eu faço com o curso escolhido por sua causa, maldito homem! — sentiu vontade de gritar, porém, apenas voltou à sua mesa, calada, cambaleante e com uma vertigem que nem sabia possuir. Aguardou de bico fechado até a convocação de todos os funcionários até o galpão maior da empresa, para o comunicado sobre a "Demissão em massa, baby!" naquele mesmo dia. O chão de fábrica era só sonhos perdidos e necessidades afloradas. Não ouviu direito o blábláblá carregado de infelicidade no discurso do Sr. Álvares. E já que tudo estava perdido ela preferiu refletir sobre o curso: Poderia ser secretária noutra empresa, não era o fim do mundo... E morrer trabalhando na droga desse emprego? Ou então Mariane poderia de uma vez por todas... Enfiar no rabo a bolsa de estudos e pagar o curso de Letras usando a rescisão enquanto arranjo qualquer outra merda que possibilite minha sobrevivência... Só não havia imaginado que "ganharia" seu sustento vendendo pintos de borracha.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora