13. May

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17 DIAS ANTES DOS CRIMES

04/02/17 - sábado, 8h15

A verdade faria sua vida ruir. Ainda suspensa pela dúvida foi arrastada pela nostalgia. Como numa cena de flashback de um filme ela foi transportada ao passado, onde acreditava no poder do amor.

*****

Havia sido paixão à primeira vista, segunda vista, terceira vista, e sabe-se lá quantas vezes Mariane se apaixonou ao ver Norberto.

No dia fatídico, na gráfica, ela concordou e assinou o contrato da prestadora de serviços sem hesitar, como se estivesse sob o efeito de uma magia; uma sensação gostosa e inebriante.

Há seis anos, a vida de Mariane começou a mudar. Seu coração passou a bater diferente, não só pela emoção de se assumir como autora. Foi o início duma nova etapa na vida dela. Chegou até a metamorfosear seu nome. Mariane optou por assinar seus livros como Mary Anne, mas ela, um tiquinho descontente, sumiu com o "r" e consolidou-se "May Anne". Para ela, o novo pseudônimo brilhava mais assim.

Chegou o tão esperado dia do lançamento simultâneo dos dois primeiros volumes da série A Hora do Crime, realizado no aconchegante e inusitado Café com Gato, em Sorocaba. E quem apareceu no evento de lançamento? Norberto. A nova May era pura realização.

O tempo foi passando e os livros estavam vendendo bem, considerando tratar-se duma autora desconhecida e iniciante. Embora seu sonho fosse inviável do ponto de vista econômico, a enchia de prazer. Como pude desistir disso um dia?

Em paralelo, enquanto vivia a emoção de ser reconhecida como uma autora revelação na cidade (e posteriormente no Brasil todo por meio das redes sociais), ela ia se hipnotizando mais com as histórias de Norberto.

Ele se mostrou um storyteller fantástico. E ela adorava ouvi-lo contar sobre as aventuras dele quando ainda estava na Academia de Polícia Militar em São Paulo. Ela ria com vontade. Claro que haviam as histórias melodramáticas, como por exemplo, da época em que ele decidiu sair da PM e buscar algo novo na vida e com menos periculosidade. Ele havia passado no concurso público do Banco do Brasil e foi ser escriturário numa agência em Campinas. Norberto a fazia rir até mesmo quando relembrava e lhe contava algumas gafes que animavam o monótono dia-a-dia na agência bancária. E por fim, de saco cheio do ambiente formal do Banco do Brasil, pegou todas as suas reservas financeiras juntadas durante os 3 anos em que ficou no cargo, e abriu sua própria gráfica, porque na verdade, havia um desejo íntimo nele de trabalhar com arte visual e impressões.

Enfim, qualquer banalidade do dia, virava uma história boa quando contada por ele. E ela adorava.

Após seis meses de namoro, e depois de ter compartilhado também todos os seus sonhos envolvendo a literatura, Norberto apareceu com uma proposta:

— Já que você elevou seu sonho em ser editora, gostaria de trabalhar comigo?

— Pera aí... Pode repetir a pergunta?

— Claro, vamos lá — disse ele limpando a boca com o guardanapo. — Você acabou de se formar em Letras. É uma ótima escritora. E eu sou dono da gráfica... Você já me disse várias vezes... — May largou os talheres sobre o prato, muda. — Ei, vai quebrar a minha louça, mesmo? — Norberto sorriu e segurou as mãos de May. Depois passou os dedos grossos nos cabelos longos e castanhos dela e disse, exibindo seu sorriso de lábios bem desenhados:

May Anne, você aceita...?

— Não ouse fazer... isso. — Ela tremia. Seus olhos dançavam, nervosos.

— ... se casar com este quarentão e realizar seu sonho junto a mim?

O mar de rosas, durante muitos anos, passou pela calmaria e a fúria de Poseidon. Houve ondas bravias, marés altas e baixas, e às vezes nem tinha onda. Entretanto, depois de toda a agitação, como em todo casamento, restou o marulho dando a impressão de distanciamento dos perigos do oceano. Tudo estava e caminhava muito bem. Norberto apareceu para somar. Norberto a ajudou a guinar sua carreira e nada poderia abalar a vida dos dois...

*****

... até May vislumbrar Laura agarrando-se nas prateleiras do almoxarifado enquanto seu marido a comia por trás. Estou ficando louca! Mesmo recordando-se da paixão forte e do amor sincero por Norberto, da representatividade dele em sua vida, e em tudo de maravilhoso conquistado no casamento, ela continuou na dúvida se seguiria com a espionagem.

E agora? Agir com covardia e tramar algo para demitir, Laura, sua funcionária exemplar e eficiente? Isso seria o bastante? Norberto estava apaixonado por Laura ou qualquer uma servia para ele? Ela demitiria uma a uma até toda a sua equipe implodir por causa do fogo sexual do marido? Aliás, fogo este que parecia esfriar com ela. Todavia, May se conhecia bem até demais. Passar pelas hesitações e travar dilemas aflitivos era só parte do processo. Ela iria até o fim. Já estava decidido.

Ainda ao telefone, solicitou urgência na entrega dos equipamentos.

— Pago o dobro se mandarem o técnico instalar na minha casa e no meu trabalho, mas é urgente! Conto com a máxima discrição e, por favor, muito sigilo!

May optou por instalar uma micro-câmera ao lado da base do ventilador de parede da sala — o qual nunca era usado desde a chegada do ar condicionado —, pois ficava mais fácil de aproveitar o cabeamento discreto do equipamento junto ao ventilador, segundo o técnico. Ela passou o tempo inteiro fingindo entender as falas técnicas dele. Desejo apenas catar o meu marido no flagra, querido! Vai saber se ele liga para a vagabunda daqui de casa para marcar encontros? Ela logo saberia.

O lugar mais crítico era o "almoxarifado". Segundo a insinuação de Micael, era ali onde acontecia a coisa toda. Então, May fez o mesmo no almoxarifado da editora: instalou a segunda micro-câmera no alto do salão, aproveitando o máximo do ângulo de captura da "bichinha", por mais que fosse contra a lei filmar o ambiente de trabalho sem consentimento dos funcionários. Resolveria isso depois, refletiu. Só liberou o técnico quando ela testou as novas maravilhas adquiridas. Acessou o site de espionagem direto de seu escritório. Inseriu o login e senha cadastrados e pôde ver a sala da sua casa e o almoxarifado da editora no seu computador. Uma tela dividida a permitia monitorar tudo em tempo real.

O melhor do pacote era a possibilidade de recorrer às gravações de datas anteriores também (com determinado limite de dias, é claro). Poderia fazer download dos vídeos de maneira rápida e fácil: bastava definir o período desejado, e pronto, o programa gerava o arquivo. May deu pulinhos imaginários em agradecimento a tecnologia.

Ela abriu a segunda gaveta acoplada à sua mesa e fitou a foto; sorriu como uma atriz dissimulada de novela mexicana. Contudo, sua alegria durou pouco, uma agitação crescente dentro de si acelerou seus batimentos cardíacos. Voltou sua atenção ao computador, editou o novo contrato de publicação e imprimiu-o; entregaria a Micael. Mesmo se descobrisse sozinha, honraria o trato, afinal, a dica havia sido importante.

Ligou para ele.

— Mesmo local de ontem, daqui meia hora. — Ouviu Micael dando risada, depois, ele confirmou. — Isso mesmo. Ria. Experimente. Está gostando da sensação de receber um Sim de uma boa editora? Pois é, né? imagina só se fosse um Sim pela qualidade do trabalho. Não é o seu caso, e há uma probabilidade enorme de você nunca experimentar essa sensação genuína, mas, vai curtindo o momento. E seguindo o protocolo — disse ela, assumindo um tom cínico —, parabéns por fazer parte da Hora de Ler, sua mais nova casa editorial, seu cretino-filho-de-uma-puta!

Desligou. O showzinho quase a deixou à beira de um ataque.

Tudo poderia ser um grande blefe, é claro. Ela tinha consciência disso, porém, entrar no jogo fazia parte de sua personalidade.

Demorou-se fitando a tela dividida do computador. O silêncio e a solidão era um perigo, pois, de certa forma, inebriada, depois de todas as decisões tomadas, ainda teve a pachorra de se perguntar: Será mesmo que Norberto teria a coragem de fazer isso comigo?

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora