56. May

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1 DIA DEPOIS DOS CRIMES

22/02/17 – quarta-feira, 12h03

Voltou em si, percebendo-se toda enrugada pela água, ao ouvir o interfone insistente na sala. O que aconteceu? O interfone tocou de novo e ainda estava caída no chão. Será que agora a minha mãe soube?

Enrolou uma toalha branca nos cabelos e amarrou a cinta de pano do roupão. Ela saiu do banheiro. A fraqueza a acompanhava nos passos. O interfone insistente não a deixava em paz. Não queria ver ninguém, nem mesmo saberia como olhar para sua mãe. Como lidar com a palavra "Pêsames" nos dias seguintes?

A contragosto, atendeu ao interfone. Reconheceu a voz do porteiro e antes que ela desse qualquer desculpa, ele disse, quase gaguejando:

— Peço perdão, dona Mariane, mas os detetives insistiram...

*****

— Sentem-se — disse May, oferecendo um sofá aveludado e confortável para seus visitantes. Era uma dupla. Um casal. Tinham ditos seus nomes ao passar pela porta, disseram de qual Departamento de Polícia pertenciam, mas ela só captou "...da sessão de homicídios". — Eu só preciso me trocar, acabei de...

— Não, não há necessidade. Fique como está. Você está em sua casa. Como está se sentindo hoje? Sente-se também, acredito que esteja precisando relaxar.

May concluiu com rapidez: Ela era então a detetive boazinha, e Ele só poderia ser o malvado. Antes de sentar numa poltrona de frente para os dois, May ofereceu água, café...

— Não. Obrigado — Ele agradeceu.

— Um chá? — insistiu May, mais cordial do que pretendia, e não entendendo aquela necessidade de expor que era a mocinha da história.

— Está certo. Eu aceito um chá — respondeu Ela, sorrindo.

Não havia chá pronto, teria que fazer. Antes de rumar para a cozinha, percebeu que Ele havia revirado os olhos.

Enquanto a água aquecia na chaleira sobre o cooktop por indução, May pegava sua caixa de madeira decorada, contendo uma coleção de chás em saquinhos.

Tentou relaxar durante a simples tarefa, mas o fato de ainda estar enrolada no roupão e de toalha na cabeça, e com os olhos inchados de tanto chorar (e o outro mais inchado ainda pela porrada), ela se sentiu-se frágil e desprotegida, totalmente desconfortável. Sentia também que os dois detetives estavam analisando tudo com seus olhos clínicos e treinados, os quais captavam uma visão geral dos ambientes da casa, e principalmente os movimentos e suspiros dela enquanto preparava o chá. E obviamente notaram o pulinho de susto que ela deu quando a chaleira gritou no fogão.

— Eu a ajudo com a bandeja. — A detetive se predispôs enquanto o outro ficou sentado no sofá, esperando. — Gosto da sua série de livros — comentou Ela. — A Hora do Crime. Ainda não li todos, mas posso garantir que lerei em breve.

May deu seu primeiro sorriso desde que havia levado o soco na cara em agradecimento.

De xícaras abastecidas nas mãos, e Ele sendo indelicado e dizendo que não gostava de chá com a expressão facial a cada gole miserável, é que se deu início ao interrogatório.

Claro que os policiais começaram suavemente, perguntando como ela se sentia depois do trauma. Explicaram que ela poderia contribuir, e muito, com as investigações, que ela se sentisse à vontade e contasse qualquer coisa que soubesse sobre os acontecimentos anteriores "a morte" de seu marido (nem assassinato, nem suicídio: apenas morte). Obviamente, toda as falas calmas e suaves, e toda aquela maleabilidade provinha d'Ela, não d'Ele. Ele só falava quando necessário, ou para corroborar algo dito por Ela.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora