10. Micael

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18 DIAS ANTES DOS CRIMES

03/02/17 - sexta-feira, 17h13

O supermercado Carrefour havia sido construído na antiga Chácara Sônia Maria, localizado na Zona Norte de Sorocaba, na Avenida Ipanema. Possuía uma área verde bastante grande e contava com uma minipista de caminhada feita para os chamados: "atletas de fim de semana". Algumas pessoas fitness, vestidas como a moda de tecido sintético pedia, realizavam algumas voltas na pista (protegida dos raios solares violentos graças às árvores). Micael estava lá e corria segurando uma garrafa d'água. Tomava um generoso gole a cada volta completada. Fez a quinta e ainda restavam mais cinco, porém, já já havia diminuído o ritmo dos passos pela metade. Na maioria das vezes ele superava a meta, menos hoje. Parou mais cedo: sentou-se num toco de árvore cortada na horizontal e esperou a respiração estabilizar. Se tivesse um espelho ali veria sua brancura feito um palmito, prestes a desmaiar.

Micael sorveu com emergência o restante da água. A garrafinha se contorceu. Mal havia se alimentado antes da grandiosa maratona de dez voltinhas e, quando os batimentos desaceleraram, o bolo de angústia no seu estômago prenunciou o vômito.

Ele tirou os fones dos ouvidos e pendurou-os no pescoço, pois os gritos do armênico-americano, Serj Tankian, aumentaram sua ansiedade. Depois, desligou o player do celular preso ao seu braço por um case produzido especialmente para os corredores moderninhos e tirou algum tempo para se concentrar nas coisas à sua volta. Viu o céu exibir um aspecto meia-luz anunciando a chegada da noite. As luzinhas dos postes foram acesas, contudo, estavam longe de iluminar com dignidade a pista toda. E merda, os zumbidos daqueles cigarras depravadas bradando por acasalamento tornava tudo mais difícil. O cheiro de mato tonificou a ânsia de vômito. Micael esfregou o rosto com as mãos.

Para completar: surgiu uma senhora sustentando um ar de superioridade acompanhada do seu cãozinho felpudo: um schnauzer de linhagem duvidosa. Ela já tinha ignorado a placa de "Não é permitido animais", então, estava fácil de ignorar a cara emburrada dos maratonistas ao serem obrigados a desviar dela e do seu lindo cãozinho no meio da pista.

O animalzinho, o único ser vivo a notar Micael, fez contato visual e logo deslizou para perto dele, farejando-o. Micael acariciou o cocuruto dele e tentou sorrir para a dona.

- Desculpe, o Duque é mal-educadinho.

- Tudo bem - respondeu Micael, ainda passando a mão no bichinho.

O cachorro trotou em círculos; encontrou a o local exato para se aliviar. O cheiro de merda fresca do Duque-mal-educadinho fez os músculos estomacais de Micael se contraírem. De repente, impossível de evitar: emergiu por sua garganta meio litro d'água misturado ao pouco de comida ingerida. Micael devia agradecer ao bichinho por ajudá-lo a pôr para fora, de uma vez por todas, aquela angústia.

O rapaz tossiu enquanto a mulher puxava seu cão pela coleira e dava no pé, sem ao menos pedir desculpas pelo Duque-cagãozinho.

Micael pôs-se de pé e tampou as narinas com as costas da mão. Sentiu vontade de cuspir a baba azeda em sua boca.

Abandonou o toco, tomando o cuidado de desviar da tortinha de bosta e da sopa estomacal. Ainda zonzo, ele adentrou o mercado. Andou até o final da loja para usar o banheiro fedorento. Precisava lavar a boca e o rosto.

Um pouco restabelecido, tentou arranjar culpados para seu dia-ruim, contudo, não era culpa do esforço físico, nem da má alimentação, nem das luzes da pista de caminhada, nem das cigarras incessantes, e claro, Duque também estava isento de culpa. A verdadeira razão de seu mal-estar desgraçado era outro: May vai comprar a ideia ou meti os pés pelas mãos e me fodi legal? Ela é tão cheia de si ao ponto de me esnobar e desprezar mais informações sobre o que eu sei?

E se ela nem se importasse de ser chifrada bem debaixo de seu próprio nariz? O plano covarde e criminoso dele, de fazer parte da Editora Hora de Ler, iria para o espaço. Entretanto, as chances dele eram boas. Só precisava de um pouco de sensibilidade ou até mesmo de curiosidade da parte de May para seguir com sua tramóia. Tomado pela ambição e inconsequente, desprezava o fato de estar sendo mais traidor que Norberto.

- Eu prometi: não vou mais atrás dela, caramba - sussurrou ele, voltando ao estacionamento mais próximo da pista de caminhada. Sus músculos retesaram, seu corpo havia escurecido. Resolveria isso acendendo um baseadinho e quando estivesse mais calmo, voltaria para casa. No entanto, mesmo havendo feito uma promessa para si, a dúvida persistia: Deveria ligar para May? Orgulhoso como era, tanto quanto inescrupuloso, resolveu ficar na sua. Dizia-se homem de palavra. A covardia cometida mais cedo seria sua última tentativa. Caso as ameaças e chantagens fossem um fiasco desistiria de vez da Livros Hora de Ler. Ao menos ele tentava acreditar nisso.

- Ela vai ter que me procurar, porra! - disse ao nada, observando alguns dos poucos "corredores" deixando a pista. - É impossível que ela não esteja intrigada!

De súbito, um pensamento lhe esbranquiçou a cara: E se ela nem chegou a abrir o envelope e o jogou fora? Teria sido possível, pois ele fora intrometido, invasor e filhodaputa com ela. Até quando Micael sofreria com a dúvida lhe consumindo a mente? A resposta vibrou em seu braço. O celular estava tocando.

- Quem é agora? - resmungou Micael, pondo um dos fones no ouvido e encaixando o fio no celular. Número desconhecido. - Alô, quem é? - Foi logo dizendo.

- May Anne. Precisamos conversar. Agora!

Seu rosto transfigurou-se, como se brincar com os sentimentos dos outros fosse uma atitude louvável. Micael respondeu com o sorriso malicioso e cretino no rosto:

- Às suas ordens, querida editora... Porém, um detalhe: não posso ser visto por aí.

- E nem eu quero! Jamais ponha os seus pés aqui de novo! - respondeu May. - Anda logo, informe um lugar para tratarmos dessa merda. Veja isso agora, seu chantagista barato!

Ela fisgou o anzol. Está nas minhas mãos! Micael sentou-se na guia do estacionamento A2. O fluxo de transeuntes por ali era bem pequeno.

- Carrefour Sônia Maria. Vai me encontrar perto da pistinha de caminhada. Estacionamento A2, perto da entrada. Quase não passa gente desse lado.

- Me aguarde!

- Traga o contrato de publicação impresso.

- Está lidando com uma profissional, seu moleque safado. Já cuidei disso.

- Ótimo - disse ele, esbanjando a beleza do seu sorriso torto.

- Se tentar passar a perna em mim, você vai se ferrar! Me conte tudo sobre Norberto e a vagabunda, seu escritorzinho de merda!

Ele nem teve tempo de responder. Ouviu o tu, tu, tu do telefone e esperou calado até o início do confronto cara a cara.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora