62. [Necrópsia]

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4 DIAS DEPOIS DOS CRIMES

25/02/17 – sábado, 13h40

Foi na manhã do dia 22 de fevereiro que o corpo havia sido registrado conforme o número do RG de Norberto Decovar junto de uma cópia oficial do Boletim de Ocorrência feito por Rodrigo Souza. O cadáver foi lavado com água e sabão, pela equipe da perícia, após tiradas diversas fotos ainda com roupas e depois com o corpo nu. As roupas haviam sido enviadas ao Instituto de Criminalística pertencente à Polícia Científica que trabalhariam na cena do crime e analisariam demais objetos que foram coletados. E o presunto seguiu para o IML e foi posto na fila para os exames de necrópsia.

No IML, a equipe estava reduzida porque muitos profissionais haviam tirado férias no início do mês de fevereiro, para emendarem com os feriados de carnaval. A folga do médico-legista calvo caíra no dia 23 de fevereiro, e só no dia 24 de fevereiro é que se deparou com o corpo de Norberto aguardando sua vez na perícia.

O médico-legista aparentava estar sobrecarregado durante aquele mês, porém, as cargas de trabalho extra já estava acabando. Logo, logo a equipe completa estaria ali para dividir os trabalhos para que assim houvessem brechas e folguinhas justas a todos do time.

Logo muito cedo, no dia 25 de fevereiro, o médico e seu auxiliar se encarregaram de iniciar mais uma necrópsia. Não possuíam muita informação extra sobre o que havia acontecido com aquele corpo.

Só de olhar, rapidamente, para o cadáver, o médico-legista concluiu que não teria que se preocupar muito com os cortes do tórax e do abdome. Estava mais do que certo de que tudo de que precisava para descobrir as circunstâncias e a causa da morte, estava ali, na parte superior, na cabeça.

Leu na ficha que a vítima provavelmente cometera suicídio. Mais um suicídio, então? E até que parecia mesmo. Porém, na sua profissão, nada poderia parecer nos resultados finais. Era ou não era. Portanto, preparados, ele e o seu auxiliar daquele dia, já dentro da sala silenciosa e visualmente anticéptica, começaram os procedimentos.

Procuraram por mais furos de bala ou quaisquer lesões em todas as partes do corpo. Os órgãos do tórax pálidos indicavam grande perda de sangue devido a hemorragia na cabeça que havia sido "estragada". Tudo que viram com seus olhos clínicos anotaram para que pudessem emitir o documento com a maior precisão e detalhes.

Fizeram um corte no couro cabeludo de uma orelha a outra para terem acesso ao cérebro. De cara, notaram algo bem atípico: a massa encefálica espalhada da maneira que estava não indicava apenas lesões causadas pelo projétil de calibre .38, como também uma fratura violenta no crânio.

Para analisar melhor, retiraram a tampa condenada do crânio com uma serra elétrica, com a maior destreza possível, e quando todos os nervos que conectavam o cérebro ao corpo foram cortados, tiveram mais certeza ainda de que além de uma bala metida no meio cabeça através da boca, o cadáver havia recebido um golpe violento na parte de trás da cabeça.

Quando terminaram de fazer a análise, incineraram as pequenas amostras de tecidos e órgãos que haviam utilizado nos exames e costuraram onde havia de costurar.

Como já estavam há horas trabalhando minuciosamente nisso, um ronco vindo do estômago da barriga do médico-legista reclamou que seria (muito) interessante dar uma pausinha e comer alguma-coisa-por-favor!, antes de finalizar a parte burocrática no fim de todo o exame.

Enquanto mastigava seu lanche de peito de peru feito às pressas em casa, com a mastigação acelerada como se os segundos importassem muito e ele não tivesse tempo a perder, o médico-legista se preocupou em quanta grana teria que desembolsar para colocar uma prótese capilar, a fim de parecer mais jovial e disfarçar a calvície braba e precoce. Jamais havia pensado nisso, porém, com a chegada do divórcio e a dificuldade em conseguir uma transa no final de cada madrugada nos barzinhos da cidade, ele fez um esforço em descobrir como é que poderia ficar melhor. Decidiu que faria um regime, não tão agressivo e restritivo, e procuraria uma academia em breve, mas o mais importante, declarou: era o cabelo. Leu num site um artigo no qual dizia que o cabelo era importantíssimo para chamar a atenção numa primeira "olhada" e que poderia ser responsável por até 70% da boa harmonização do rosto. Verdade ou mentira, já não importava mais a essa altura, só o que sabia era que precisava dar um tapa no visual urgentemente e conseguir alguns encontros que envolvessem nudez de mulheres, e principalmente que estivessem vivas.

Na mini-copa arranjada e instalada ao lado das salas de necrópsia, ele estava sentado sozinho numa mesinha que comportava míseras quatro pessoas. Tinha dado uma breve pausa na perícia que estava fazendo num cadáver cujo nome logo se tornaria conhecido por toda Sorocaba e se espalharia de forma rápida e (com muito menos importância) no Brasil todo.

Estava prestes a terminar o relatório final da necropsia.

A televisãozinha próxima a ele, acoplada num suporte metálico na parede, acima de sua cabeça, estava ligada como sempre. Aliás, parecia que jamais tinha sido desligada na vida. Estava sempre com o volume baixo, jazendo bem próximo do teto branco e frio.

O médico-legista daquele plantão não teria prestado atenção a ela se, num olhadinha de esguelha, não tivesse se deparado com o que estava escrito no letreiro da reportagem: HOMICÍDIO SEGUIDO DE SUICÍDIO É REGISTRADO EM SOROCABA.

Por um breve momento ele fez uma analogia idiota e involuntária sobre aquela faixa na TV com o seu problema de calvície. É isso! Vou mandar fazer a prótese! No caso, a sinapse que lhe ocorreu foi a de que a sua cabeça precisava de algo como um "letreiro" para chamar a atenção de quem o olhasse de esguelha também.

Pegou o controle da TV no cantinho da mesa, o qual raramente era usado, e aumentou um pouco o volume enquanto mastigava o sanduíche.

Assistiu à notícia diminuindo o ritmo das mastigadas cada vez mais, até que por fim, conseguiu fazer descer pela garganta o que havia se formado em sua boca. Flagrou-se perplexo.

— Mas que merda! — O sanduíche desceu rasgando. Depois tossiu por conta de um pedaço do pão que havia agarrado em sua garganta. Recuperado, completou: — Está tudo errado! — Abandonou o resto dele na lata do lixo e correu para o banheiro para escovar os dentes. Voltou apressadamente ao trabalho para terminar logo o relatório final daquela última necrópsia. Cuidou de emitir a Declaração de Óbito identificando o verdadeiro motivo da morte, e emitiu os resultados combinados no relatório final à polícia o mais rápido que pôde para acabar com aquela besteira que estavam dizendo nos jornais e para consertar e salvar a investigação que seguia no rumo errado até o momento.

O documento emitido não tratava de um caso de suicídio, e sim, da certeza de um homicídio.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora