08. May

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19 DIAS ANTES DOS CRIMES

02/02/17 - quinta-feira, 10h45

— Nossa, realmente preciso dar mais pausas para me alimentar melhor — disse May, mostrando a mão trêmula espalmada no ar.

— Não seria começo de crise, amor?

— Talvez.

— Vou levar você ao médico...

Ela abanou a mão em negativa.

— Sabe o motivo disso? Você está trabalhando demais e acaba esquecendo da sua própria saúde — disse ele com as mãos na cintura. — Imagina se você desmaia aqui... Sorte sua eu aparecer aqui bem na hora certa. E você está pálida. Precisa comer algo. E agora mesmo.

— O que seria de mim sem você, heim?

Ele se aproximou para beijá-la. May desviou o rosto. Num movimento rápido ela pôs as folhas num canto da mesa, como se estivesse cansada de tanto ler.

— Aonde vamos, antes que eu desmaie? — May sorriu e se flagrou mordendo o lábio inferior.

— Vamos subir ali na Padaria Real mesmo — disse ele, referindo-se à padaria da Rua da Penha, no Centro. A editora ficava na Avenida Barão de Tatuí, portanto, eles tinham duas "Padarias Reais" próximas (Um privilégio! Cercados pela melhor coxinha da cidade!) — Na de baixo não tem cadeiras, e você, pelo jeito, vai precisar ficar sentadinha.

— Ótimo. Estava cogitando em sair da dieta mesmo. Apenas por hoje. Estou louca por um triângulo de queijo, e para recuperar a energia, também comerei aquela tortinha trufada — confessou ela, levantando-se da cadeira quase sem forças nas pernas, contudo, precisava se manter firme, fazer jus a mulher destemida, forte e corajosa que emoldurou seu rosto branquelo num corte de cabelo perigoso. Estava proibida de ruir assim...

Se Norberto percebeu algo estranho nela, ignorou. A cabeça dela equivalia à uma panela de pressão: perguntas de todos os sabores ferviam dentro dela.

O matrimônio ainda possuía várias folhas em branco aguardando o preenchimento da história com uma caligrafia pomposa, mas de repente, a ponta do lápis se quebrou. TEC! Seria uma brincadeira doentia e infantil da parte do escritorzinho-de-merda? Mesmo assim, isso bastava: a confiança no seu marido levou um tombo. A ponta danificada do lápis rasgaria as folhas se ela continuasse a escrever. O que fazer sem pôr tudo a perder? O terremoto ainda não comprometeu seus alicerces; havia rachaduras e, mesmo assim, ela decidiu vigiar todos os passos de Norberto de agora em diante.

*****

Enquanto ele tagarelava sobre a estupidez do último fornecedor de papel cartão utilizado na impressão das capas dos livros, May treinava seu autocontrole. Fingia interesse na conversa, opinava, concordava: — Sim meu amor, todo mundo é estúpido para você... Mas sua cabeça estava em outro lugar: Micael está blefando (feio) para conseguir a publicação de seu livro? Será que ele tem mais provas e a foto é só uma amostra? E por que ele diz que está tentando me ajudar?

— ... bom, e tem a PAPGRAF neste sábado... ─ Pausa. ─ Querida, está prestando atenção?

— Ah, sim. Claro. Sabe como é. Quando saio da editora eu fico pensando nas tarefas...

— Está tomando os remédios direitinho?

— Claro. — O olhar dela o repreendeu.

— Pega mais leve consigo mesma, 'tá? Já disse isso várias vezes. — Norberto fez mímica para a moça do balcão: "mais um café". — Como estava dizendo, a PAPGRAF é neste sábado. Quero ir acompanhado, mas claro, tenho a obrigação de te poupar das palestras sobre Papel e Celulose e Mercado Gráfico, seu negócio é mais intelectual. Aposto: você dormiria na apresentação da nova impressora, nem me lembro mais do nome, se é que dá para chamar de nome aquele monte de consoantes e números. Está mais para código. — Norberto riu, May também riu da piada infame.

— São dois dias, né? — Ela manteve os olhos fitos na tortinha.

— Sim, amor. Amnésia agora? ─ Soltou risinhos. ─ Todo ano tem esse Workshop, como bem sabe. Primeiro dia, sábado: Papel e Celulose, aliás, a empresa Suzano está cogitando um novo reajuste no preço dos materiais, ou seja, vai ficar mais caro comprar livros este ano. Os leitores perdem, e a gente também. É aquela velha história. — Ele mordeu o lanche natural recheado com tomate seco, rúcula e queijo branco, e depois continuou, ainda mastigando: — E no segundo dia, domingo: o assunto é Mercado Gráfico, você sabe. Impressoras profissionais novas, tendências mercadológicas, enfim, se for como sempre é, o segundo dia vai ser "o menos chato"... Obrigado... — O café expresso estava pronto, ele se levantou e foi buscar. Voltou à mesa. A xícara exalava o delicioso aroma. Norberto sorveu um gole generoso do líquido preto. — E, como você precisa descansar e eu quero poupar você dessa chatice toda, vou levar alguém da editora comigo...

Tudo bem que a base da tortinha trufada era feita com massa podre, e a massa podre é dura, mas não justificava a explosão no pratinho dela.

— Caralho, amor. — Norberto riu. — Pensei que estivesse fraca, mas estou enganado, você está bem fortinha.

Metade da tortinha foi ao chão. Ela observou os farelos sobre a mesa. O curto momento serviu para reflexão. Enquanto algumas coisas se espatifavam, outras se juntavam. Micael dissera: "duplamente enganada". Norberto está me traindo com uma funcionária! As poucas pistas não indicavam quem além dela trepava com ele, contudo, May intrigou-se mais ainda pelo fato curioso de que... Micael sabe quem é a vadia!

— Preciso... — Levantou-se sem terminar a frase e fugiu da mesa usando a velha e boa desculpa do toalete.

Meteu calmantes goela abaixo em vez de urinar.

Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]Onde histórias criam vida. Descubra agora