6 MESES ANTES DOS CRIMES
Estava claro: nem se May estivesse com a garganta inflamada e a voz rouca, jamais teria a voz grave daquele jeito.
— Sentindo minha falta, querido? — Risada de deboche.
Quando o dono da voz disse que tinha sua esposa nas mãos, Norberto desmoronou. Ela foi sequestrada mesmo... O objetivo da ligação parecia ser o de acabar com qualquer dúvida a respeito disso. Então, estava acontecendo, simples assim. Igual aos casos que apareciam nos telejornais banalizadores de atrocidades sociais; como nos filmes; aliás, tão simples e tão real quanto podia se lembrar do período em que trabalhou na Polícia Militar. Jamais imaginou que aquilo poderia acontecer bem próximo de si, por mais que visse a pilha dos registros de desaparecidos e supostos sequestrados aumentando cada dia mais.
"Estamos com ela"; "Queremos a grana"; "Sem envolvimento da polícia!"; "Faça tudo o que eu mandar ou ela sofrerá as consequências". Será que imaginam que já fui da polícia?
Desejou com força ligar para algum ex-parceiro da corporação especialista em operações de sequestros e perguntar: O que é que eu faço agora? Entretanto, lembrando-se dos casos malfadados e os pequenos números de conclusões positivas da PM diante do número de casos abertos e que ainda aguardavam soluções, Norberto fez as perguntas de praxe, seguiu o roteiro:
"Onde ela está?"; "Ela está bem?"; "O que fizeram com ela?"; "Por quê?"; "O que querem?"; "Quanto querem?"; "Não a machuquem!"; e finalizou exigindo: "Quero falar com ela AGORA!"
O apelo foi atendido, contudo, sem diálogo entre ele e May. Ele ouviu apenas o choro dela seguido de gritinhos rasgados. Isso tem chance de ser um golpe? Entretanto, algo dentro dele reconhecia aquele som, aquele desespero regurgitado. Conjurou na mente a fita prateada vedando a boca dela e as lágrimas banhando seu rosto ossudo: uma cena clichê.
É, parecia real demais. E assim, o horror o atingiu feito uma entidade fantasmagórica num quarto escuro. Várias perguntas surgiram na cabeça dele. Merda, preciso contatar a polícia para que possam rastrear a ligação, mas como?
O sequestrador de voz grave cuspiu ameaças — também seguindo o script — e avisou que aquela seria a última ligação, portanto, passou as instruções, sem repeti-las. "Você já sabe como funciona a partir de agora".
— Você não faz ideia de com quem estão mexendo...
— Corta essa. Você já não faz parte da polícia faz tempo, cara. — E debochou através de risos.
— Como é que...? — Bom, eles devem ter pesquisado sobre mim antes de sequestrar May..., deu-se conta.
Sem muita escolha, Norberto ouviu atento; registrou cada detalhe da fala do outro. Suava como se fosse uma garrafa de cerveja no comercial de TV, torcendo para sua cabeça não explodir como acontecia com as tampas que saltavam num ecstasy borbulhante.
No fim, segundo as próprias palavras do sequestrador, a missão era a seguinte: Norberto tinha que dar um jeito de juntar os trezentos e setenta mil reais nas próximas 24 horas; rechear a mochila com a grana e abandonar o C4 numa determinada viela da Estrada Vicinal, a qual ligava a cidade de Iperó a de Sorocaba; depois: voltar de busão para casa com sua querida esposa sã e salva. O que fariam com o carro depois? Não importava.
A ameaça ficou gravada em seus ouvidos:
— Nem sonhe em pôr seus antigos amiguinhos da polícia na nossa cola, senão a dondoca aqui vai ser desovada no Rio Sorocaba, firmeza?
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Como escrever, matar e publicar [Vencedor do Wattys2020]
Mystery / Thriller(LIVRO COMPLETO) | VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS2020 | Categoria: Mistério & Suspense Do que você seria capaz para publicar seu livro? O jovem escritor, Micael - consumido pela ambição de ter seu livro aceito pela editora-chefe da Hora de Ler -, aparece...