Capítulo Sessenta e Cinco- Eu deveria...

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Heloyse

O silêncio nos acompanhou até o carro.
Will dirigia com uma mão no volante, a outra apoiada na porta, enquanto, de tempos em tempos, me lançava olhares furtivos.
O peso do que havia sido dito pairava entre nós.
E, no elevador do hotel, o silêncio tornou-se insuportável.
A tensão era densa.
Ele abriu a porta e esperou que eu entrasse. Depois, jogou a chave sobre a mesa de centro e indicou o sofá para que eu me sentasse.
Me acomodei enquanto ele colocava gelo em um copo.
— Há algumas bebidas aqui. O que quer beber?
— Qualquer coisa.
Ele abriu a garrafa de Jack Daniel’s, despejou o líquido em dois copos com gelo e me serviu.
Will se sentou no sofá à frente, deu um gole demorado em sua bebida e ficou olhando para o copo. Após um silêncio constrangedor, ele resolveu falar.
— Você cortou o cabelo e mudou a cor.
Passei a mão timidamente sobre meus fios, que já não eram tão longos. Agora, estavam abaixo do ombro, mais claros e volumosos por causa das camadas do corte.
— E está mais bonita. Você sempre foi, mas agora... está exageradamente bonita.
Ajeitei a barra do vestido azul de mangas compridas. Minhas pernas, cobertas por uma meia-calça, estavam expostas, e me senti desconfortável.
— Você não gosta que eu te elogie?
— As coisas mudaram.
Ele me olhou e depois desviou o olhar.
Will estava diferente. Devia estar com trinta e três anos, mas ainda carregava aquele magnetismo que fazia as pessoas olharem para ele onde quer que fosse.
— Eu queria ter vindo antes. Perguntei para Cielo sobre o seu endereço, mas ela disse que não sabia.
— Ela não mentiu. Mantemos contato por telefone, e eu nunca disse onde morava. Tinha intenção de contar quando ela viesse me visitar. Ela virá no final do ano — dei um gole na bebida. — Por que estava me procurando?
— Porque eu te amava e queria vê-la para dizer isso.
Uma vez, Johnson disse que Will me amava, usando o verbo no passado, e isso me incomodou. Ouvindo Will repetir a mesma palavra, era como se a ponta de uma faca me atravessasse lentamente.
— Acabei desistindo de procurá-la. Eu precisei.
— Não entendo.
— Eu estava fazendo terapia.
Pisquei, surpresa.
— Isso é maravilhoso.  Fico feliz por você.
— Obrigado. Foi algo necessário. Ajudou-me a separar o passado do presente. Me fez enxergar que os anos estão passando e eu preciso aproveitar os que restam. Não posso envelhecer carregando esse peso. E agora, passado já não me assusta tanto, porque eu resolvi enterrá-lo em algum lugar.
Will ficou em silêncio por um momento antes de continuar.
— No dia em que você partiu, eu quis beber até esquecer que você existia.  Então, subi na caminhonete e comecei a dirigir igual um louco pela fazenda.  Não me importei com nada. Eu estava tão cansado da minha vida — ele passou a mão no rosto, olhando para o chão. — Tão cansado de trabalhar dia após dia apenas para manter minha mente longe das lembranças que me assolavam. Pensei que talvez seria melhor que eu morresse.
Meu peito apertou.
— Então, soltei o volante, acelerei e deixei o carro ir, enquanto bebia o que restava na garrafa. Não vi mais nada.
Eu precisava tomar ar. Senti a umidade nos meus olhos.
— Dizem que o que é ruim não quebra. Foi a primeira coisa que pensei quando acordei no hospital. Depois, imaginei que, por causa da bebida, talvez eu não tivesse pisado forte o suficiente no acelerador. O máximo que consegui foram hematomas na boca, nos olhos e um braço quebrado. Acredite, eu não teria morrido naquele acidente, mas a quantidade de álcool que ingeri... Isso sim teria me matado.
Ele apertou o copo nas mãos.
— Johnson foi me visitar, e em condições normais, eu teria quebrado seu pescoço, mas não conseguia  falar ou fazer qualquer coisa. Eu só queria morrer. Minha vida me cansava. Sentia-me cansado desde a infância. Então, Calvin pediu que o Dr. Malerman, o psiquiatra, me atendesse, mas eu não ouvia nada do que ele falava, me recusa a tomar os remédios.
Ele soltou um suspiro.
— Quando Cielo foi me visitar, perguntei onde você morava, mas ela me disse que, antes de procurar você, eu precisava me encontrar. Foi aí que resolvi fazer a terapia. Por isso não te procurei.
Engoli em seco. Me levantei e fui até o aparador de bebidas. Enchi meu copo, sentindo sua presença atrás de mim.
— Eu fico imensamente feliz por você. E desejo que, um dia, encontre a felicidade.
— Obrigado — ele disse em voz baixa.
Me virei, e nossos olhares se encontraram. Will abaixou a cabeça, apoiando as mãos no móvel, me cercando sem me tocar. Nossos rostos estavam a poucos centímetros de distância.
Eu precisava dizer algo.
— Eu também fiz algumas sessões.
Ele franziu a testa.
— Fez?
— Sim — respirei fundo. — Eu precisava lidar com tudo isso, mas principalmente... eu precisava entender meus próprios erros.
Will me observou atentamente.
— Eu sabia que não deveria ter mentido sobre as pílulas. Sei que você confiava em mim e eu quebrei essa confiança. Também sei que, no dia em que terminamos, eu fui cruel quando mencionei sua mãe.
A dor passou pelo rosto dele, mas ele se manteve em silêncio.
— Eu realmente tinha pensado em dar o nome dela ao nosso bebê, se fosse menina. Mas dizer isso naquele momento foi errado. Eu não respeitei sua dor, não respeitei o seu passado. Simplesmente joguei isso em cima de você, sem pensar no quanto poderia machucar.
Will baixou os olhos para o chão, ouvindo em silêncio.
— Eu também deveria ter contado quando desconfiei que estava grávida — continuei, sentindo um aperto no peito. — Mas fui imprudente. Tive medo da sua reação e, no fim, eu vejo que teria sido tudo mais fácil se eu tivesse contado. Eu compliquei tudo, sem necessidade.
Ele respirou fundo, mas não disse nada.
— E eu deveria ter ligado para pedir desculpas. Mas sabe por que não fiz isso? Porque eu tinha medo. Medo de ouvir sua voz e desmoronar. Então, ao invés de consertar as coisas, passei esses anos sofrendo, guardando mágoa porque você me afastou da sua vida... e me sentindo culpada por ter contribuído para isso.
Levantei o olhar para ele, esperando alguma reação.
— Mas se minha gravidez não tivesse sido interrompida, essa seria a única coisa da qual eu jamais teria me arrependido. Eu teria seguido em frente, teria enfrentado tudo e teria amado nosso bebê com todas as forças.
Ele levantou o olhar para mim, parecendo vulnerável.
— Eu jamais rejeitaria meu filho.
— Eu sei. Você já me disse isso e eu acredito. Mas eu deveria ter tido o mínimo de consideração por você e ter contato. Eu sabia dos seus traumas. Eu fui egoísta.
Will respirou fundo.
Fez-se silêncio entre nós. Meu coração batia forte contra o peito.
— Eu me deitava e não conseguia dormir. As noites eram meu maior tormento. Minha mente sempre me levava a você, Will. Durante esses anos, me perguntei se você não sentia minha falta, nem por um minuto. E sabe de uma coisa? Eu me mantive forte. Não sou fraca por ainda amar você, mas sou forte por continuar seguindo todos os dias, mesmo a sua ausência me consumindo.
Ele fechou os olhos por um instante.
— Eu tentei não amar você, mas foi tudo em vão. E agora você voltou. Por quê? Quer levar meu perdão, mas com ele vai levar meu coração, porque eu ainda amo você. Muito mais do que antes.
Empurrei seu peito e corri até a porta.
— Aonde vai? — ele perguntou, segurando meu braço.
— Vou embora.
— Eu quero que fique.
— Então me diz... Você ainda gosta de mim?
Os segundos se passaram. Tudo ao redor parou
Então sua resposta veio:
— Não!

UM PONTO DE PARTIDAOnde histórias criam vida. Descubra agora