Capítulo Dois - Lembranças

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Heloyse


Era quase três e meia da tarde e eu estava correndo. Fugindo! A chuva caía dolorosamente gelada sobre mim e comecei a ficar sem fôlego.
"Respire! Respire!"
Sentir a chuva gelada caindo sobre minha pele, era a única coisa que provava que eu ainda estava viva. Apoiei minhas mãos sobre meus joelhos e tentei controlar a respiração.

Dar adeus foi a hora mais difícil pra mim. No entanto, ele estava estabilizado, iria ter uma família e eu estava amargamente machucada. Porém, as lembranças estavam lá e não pensar nisso, era inevitável.
Michael sempre foi uma pessoa de extrema simpatia. Bonito também. Era alto, cavanhaque impecável, lábios bem contornados, cabelos bem alinhados e de um tom escuro. Talvez fosse uma beleza comum, mas, misturado ao seu bom humor, fazia com que ele fosse o homem perfeito que eu sempre imaginei.
Passamos os melhores momentos juntos. Tínhamos planos e tínhamos um ao outro. Nos completávamos e todos sabiam disso. Todos diziam isso.
Meus pais tinham um Buffet que estava se expandindo e depois, com a morte do meu irmão, eu não quis mais ficar na casa deles. Eu queria me afastar daquele ambiente pesado.
Marcus fazia falta. Sua morte foi um dos "adeuses" que eu disse. Minha mãe sempre chorava quando falava dele. Começou a ficar grudada em mim, mais do que antes.
Marcus morreu com trinta e três anos em um acidente de moto. Estava bêbado. Meu pai foi o primeiro a pedir que eu saísse um pouco. Dizia que eu precisava de novas experiências.
Novamente dei adeus.
Então, saí da Califórnia e vim para Boston, ficar um tempo na casa de uns tios da minha mãe. Meu pai havia me dado uma quantia considerável. Saí da casa dos meus tios avôs e comprei uma casa confortável. Não era nova, ainda assim, era minha e reformei do meu jeito. Até que foi um bom negócio, considerando o fato de o bairro ser próximo ao centro, porém, bem tranquilo.
Meu pai enviava uma mesada todos os meses.
Comecei a trabalhar em uma perfumaria no shopping e com o restante do dinheiro que sobrou da casa, comprei um carro usado.
Depois de três anos, me tornei gerente. Com o passar do tempo, a loja fechou e me demitiram. Então abri uma cafeteria na minha casa.
Quantas vezes eu fiquei com os olhos atentos, prestando atenção enquanto minha mãe fazia bolos e doces para encomendas. Eu era fascinada por cada criação que ela fazia. Sentia falta daquele tempo.
As crianças saíam da escola e sempre davam uma paradinha para comer os cupcakes que eu fazia. Havia bolos, tortas, cafés, cappuccinos, chás e muitas outras coisas. Era um sonho realizado.
Como eu conheci o Michael? Bom, isso foi quando comecei a trabalhar no shopping. Uns quatro meses depois de iniciar o trabalho.
Um dia, enquanto eu fazia sangria em um dos caixas, uma das vendedoras havia saído para almoçar e esquecido a carteira em cima do balcão. Eu verifiquei se estava tudo certo com meu caixa e saí para o almoço. Levei a carteira para entregar a minha colega de trabalho. Depois que a encontrei e lhe entreguei a carteira, fui em direção ao restaurante onde eu costumava almoçar, então, alguém esbarrou em mim e derrubou café no meu uniforme. Eu levei um susto e ao mesmo tempo, estava grata pelo fato de que o café não estava totalmente quente.
Michael me entregava guardanapos, tentando reduzir o estrago no meu vestido. Tempo depois, mesmo frustrada com o que aconteceu, eu não deixei de sorri quando ele começou a flertar comigo. Me deu o endereço de onde trabalhava e pediu que eu levasse a conta da lavanderia.
Aquele dia foi estranho. Tanto, que pensei nele à noite toda.
Três dias depois, fui até onde ele trabalhava e levei a conta. Óbvio que eu poderia pagar, no entanto, eu estava com uma terrível ansiedade. Precisava vê-lo.
Quando Michael me viu, ele deu um sorriso tão amplo que eu mal pude conter a vontade de retribuir. No mesmo dia, almoçamos juntos. Foi interessante ouvir sobre sua vida. Trabalhava como corretor de imóveis, era filho único e não tinha mais os pais vivos. Contava o quanto era ruim não ter família, pois os seus parentes moravam distante e raramente tinham contato. Seu pai morreu de ataque fulminante e um ano depois, sua mãe teve um aneurisma.
E todos os dias almoçávamos juntos. Já estávamos acostumados um ao outro. Nos víamos sempre. Saíamos juntos e estávamos juntos em todos os sentidos. Eu me entreguei a Michael. Entreguei meu corpo e junto, meu coração.
Com um ano de namoro, recebi a pior notícia da minha vida: Meus pais haviam morrido em um acidente de avião. Então, dei adeus duas vezes mais.
Acho que parte de mim, morreu com eles. Me tranquei de tal forma que nada mais interessava. Michael era o único que realmente aguentava meu estado emocional. Nem amigos poderiam ter feito o que ele fez. Ele foi importante durante aquela fase escura que atravessei.
E naquele mesmo dia, enquanto eu chorava em seus braços, eu quis que ele fosse minha família. Meu irmão e depois meus pais. Todos mortos!
Meus tios se mudaram para Oklahoma e foram morar com os filhos. De certa forma, eu estava sozinha no mundo, mas, Michael não deixava que eu me sentisse assim. Me ajudou a superar. Bom, pelo menos a fingir que havia superado. Foi ele quem me deu maior incentivo para fazer o que eu mais gostava.
E então, passaram-se nove anos.
Eu já tinha duas cafeterias no bairro. Uma na parte debaixo da minha casa e outra, perto da escola.
Tudo realizado. Tudo organizado.
Exceto, pelo fato de que caímos na zona de conforto. Talvez eu tivesse minha parcela de culpa.
Eu vi minha mãe e meu pai sofrendo quando perderam Marcus. Sofri quando perdi todos eles. Eu não queria perder mais ninguém. Eu queria ficar com o que eu já tinha. Só Michael já me bastava. Não queria me apegar a filhos sabendo que um dia, eu poderia perdê-los. Quem me daria a garantia que isso não aconteceria?
Agora já não o tinha mais. Já não tinha ninguém.
Todas essas lembranças giravam na minha cabeça.
Eu precisava esquecê-lo. Eu só não sabia como.
Saí andando na chuva, pelas ruas desertas até chegar em casa. Péssima hora que resolvi ir sem meu carro. Eu entrei em casa, encharcada.
Estava sozinha no mundo, como uma partícula de poeira no espaço. Sentei no chão, encostada na porta da sala, coloquei o rosto sobre as pernas e chorei.


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