Heloyse
Uma senhora havia me dado carona e quando me perguntou para onde eu iria, eu apenas disse "aonde a senhora for". Ela me olhou com um simpático sorriso no rosto e voltou a olhar para a estrada.
- Ok! Eu só não poderei levá-la até sua fuga. Meu destino é daqui à uma hora e meia.
- Sem problema!
- Não quer saber para onde estamos indo?
- Não! Acho melhor não! Aonde este caminho me levar, está ótimo.
Eu nunca havia saído de Boston, depois que comecei a morar lá. E com vinte e seis anos, eu notei que apenas usei minha vida para trabalhar. Eram poucas as vezes em que saí para me divertir. Eu só trabalhava ou vivia "agarrada" em Michael. Agora, percebo que a vida estava indo e eu não tinha aproveitado nada.
Uma hora e meia depois, a senhora que eu nem fiz questão de perguntar o nome, me deixou em uma estrada e se foi, acenando e me desejando boa viajem. Retribui-lhe o aceno e comecei a caminhar.
A longa estrada estava iluminada pelo sol do meio dia. Eu já havia caminhado antes da senhora me dar carona e agora, eu notava que minhas pernas sentiam o cansaço. Eu não tinha costume de fazer caminhadas longas.
Pelo acostamento da estrada, eu caminhava sem me importar com o tempo ou com as placas de indicação. Meus braços estavam doloridos por causa da mala, então sentei em um banco de ponto de ônibus e decidi descansar um pouco.
Minutos depois, fui até um restaurante de beira de estrada e fiz minha refeição. Após a refeição, caminhei mais um pouco.
Avistei um playground vazio. Me aproximei a um banco e me sentei. Fiquei vendo um pássaro solitário se arrastar pelo céu. Um pássaro tão pequeno em um mundo grande. Eu me sentia assim.
Fiquei lá por horas e horas, observando as pessoas, as crianças... Completos estranhos com suas vidas comuns, estranhas, problemáticas ou exageradamente, boas.
Tirei uma foto dos meus pais ainda jovens, de dentro da minha mochila. Meu irmão estava sorrindo e eu, me escondendo atrás da minha mãe. Me lembrei de Marcus me defendendo na rua, na escola. Senti falta dos abraços do meu pai, dos conselhos da minha mãe, dos beijos de Michael. Eu estava só. Não estava preparada para perder nenhum deles.
Fazia um bom tempo que eles se foram, mas, ainda doía como se fosse recente. Talvez se Michael não estivesse comigo no momento em que perdi minha família, eu já tinha fugido há muito tempo.
Enquanto muitos fugiam de casa por não tolerar seus pais, eu teria fugido por não tê-los mais. Eu teria atravessado o oceano para ficar longe da dor que senti.
Fiquei olhando minhas fotos com Michael, no celular e resolvi apagar uma por uma. E a cada foto que eu apagava, um soluço escapava da minha boca. Mas, a última, eu observei por um bom tempo. Era a foto dele dormindo. Aquele dia havia sido nossa primeira vez.
Apaguei também.
A tarde já estava caindo e voltei para a estrada. Andei e andei, até chegar a escuridão. Na estrada, as lágrimas caíam. Eu não sabia o que estava procurando, não sabia o que ia encontrar pela frente. Talvez não encontrasse nada, mas, dentro de mim, eu queria encontrar uma motivação, algo para me distrair, algum lugar que me fizesse bem.
Pensei em sentar no próximo ponto. O primeiro ônibus que passasse eu subiria.
Lágrimas transbordaram de meus olhos. Pensei que eu tivesse chorado todas, no entanto, eu estava enganada. Toda aquela dor começou a sair de mim como grandes ondas e de repente, eu estava parada no acostamento, soluçando e tentando fazê-las parar de cair. Estava cansada de tanto chorar. Eu havia chegado ao limite.
Chorei "litros", por vários meses.
Se eu pudesse contar todas as lágrimas que derramei, eu nunca chegaria a um resultado. Poderia um oceano competir com elas?
Tudo doía em mim. A sensação de perder o que se ama, o que se tinha. Estava tudo ali em mim, me torturando a cada lembrança.
Na escuridão da estrada, apenas iluminada pelas luzes dos postes, notei que mesmo depois de muito andar, não havia pousadas, hotéis ou ponto de ônibus, apenas asfalto, carros e carretas.
Uma grande caminhonete parou próxima a mim e a porta do passageiro se abriu. Avistei o velho motorista sorrir pra mim.
- Hey, moça, para onde vai?
- Vou para algum lugar, aqui perto.
- Sei! Você quer carona?
- Não, obrigada!
- Andale, eu não sou nenhum maníaco se é isso que a assusta. Suponho que tenha a idade da minha filha e garanto que eu não descansaria sabendo que ela poderia estar em alguma estrada por aí, correndo o risco de ser assaltada ou coisa pior. Eu não vou fazer nada com você e pra você ver que estou falando a verdade, terá que subir aqui para que eu prove. É só tirar uma foto de mim e enviar o número da placa da minha caminhonete para algum contato no seu telefone. Assim, se você não der notícias, saberão o que houve.
Eu dei um leve sorriso e fiz o que ele sugeriu. Enviei para Ashley, junto com a explicação de que eu estava pegando carona. Então subi na caminhonete.
Meu celular vibrou e a mensagem de Ashley estava lá.
"VOCÊ É LOUCA? PERDEU O JUÍZO? COMO PODE PEGAR CARONA COM UM ESTRANHO? POR QUE NÃO ENTROU EM UM ÔNIBUS? ME DIZ ONDE VOCÊ ESTÁ! DESCE DESSA CAMINHONETE AGORA, HELOYSE!"
Eu enviei outra mensagem tranquilizando-a e deixei bem claro que não responderia a próxima se ela continuasse me repreendendo. Ela enviou mais duas. Mandei um "fica em paz, te adoro". Ela respondeu com um "eu também e se cuida, maluca".
Enquanto isso, o senhor olhava atentamente para a estrada.
Fotos dele e uma senhora estavam sobre o painel. Tinha também, a foto de uma moça que com certeza, era sua filha. Pacotes vazios de batatas fritas e um chaveiro com a forma de um milho pendurado no espelho.
Seus cabelos brancos iam até seu ombro e eram cobertos por um chapéu. A barba branca um pouco grande, o faziam parecer simpático.
- Então señorita...?
- Pode me chamar de Heloyse.
- Señorita Heloyse, o que faz por esses lados e sozinha?
- Isso é complicado.
- Por quê? Você matou alguém? Se for isso, por favor, não me conte. Prefiro não saber que estou ajudando uma assassina.
Eu dei um sorriso e respirei fundo.
- Não, não é isso. Eu estou indo para qualquer lugar. Estou me afastando de toda merda que aconteceu na minha vida.
- E como está se saindo?
- Não sei. Comecei isso hoje. Eu não sei para onde estou indo. Eu apenas preciso ir - dei um longo suspiro. - Você acha que fiz errado?
- Você acha que fez errado?
- Ainda não me arrependi.
- Bom, eu acho que fugir não vai resolver seus problemas. Eles irão com você em qualquer lugar. A questão é o que fazer com eles. Você poderia ter ficado e enfrentá-los ou seguir em frente e enfrentá-los em outro lugar. Não faz diferença. Porém, às vezes, as coisas acontecem sem querer, de forma surpreendente. Você poderia estar lá e automaticamente a vida te enviar alguma resposta, ou você pode ir e encontrar seu caminho. A questão é que, quando tem que acontecer, acontece, não importa onde você esteja.
- Faz sentido - falei baixinho - Como é o seu nome?
- Thomas Thompson!
- Obrigada, Thompson, pelas palavras.
Thompson sorriu e voltou seu olhar para estrada.
Eu olhei para fora da janela. As luzes das casas ao longe, brilhavam. Eu senti um vazio dentro do peito. Queria que tudo estivesse bem. Queria voltar ao passado e mudar tudo. Porém, eu tinha fé que um dia eu não me lembraria de tudo o que aconteceu com tanta dor.
No decorrer da noite, conversamos sobre a família de Thompson. Dava pra ver o quanto ele os amava. Disse que seu filho Martin, havia morrido há três anos. Um touro o derrubou e o pisoteou várias vezes. Ele ficou em coma por uns meses, depois estava paraplégico e depois, uma forte infecção em seus pulmões o levou a morte.
Thompson apontou para o porta-luvas e quando abri, vi a foto do seu filho. Um rapaz de vinte e três anos que se parecia com o pai.
Também fiquei sabendo que ele, Thompson, era neto de mexicanos e havia nascido no Texas.
- Para onde está indo?
- Clearwater. Moro lá e estive essa semana em Boston para resolver umas coisas. Vou dar uma parada na casa do meu cunhado e depois, seguirei para o Texas.
- Então você é do tipo cowboy, com calça coladinha, blusa xadrez de mangas desfiadas e tudo mais?
- Menos xadrez! Nunca combinou com meu tom de pele.
- Certo! - eu disse sorrindo para ele. - E está conseguindo resolver suas coisas?
- Eu fui à casa de um dos meus cunhados e estarei indo para a casa do outro. Preciso pagar minhas dívidas.
- Desculpa! Eu não queria bisbilhotar...
- Não se preocupe. Antes de Martin sofrer o acidente, eu tive problemas com minha fazenda. Estávamos com os reservatórios de água completamente secos, a fazenda começou a ter problemas e eu precisava de dinheiro para pagar as despesas do hospital. Logo quando ele retornou para casa, teve o custo das medicações, os cuidados especiais, depois ele voltou para o hospital com essa maldita infecção. Enfim... Eu precisava de dinheiro e meus cunhados emprestaram. Por eles, eu não precisaria devolver, mas, sei que eles também precisam. Fui pagar um deles pessoalmente e agora vou pagar o outro. Eles me ajudaram muito.
- Isso é maravilhoso. Fico feliz por você ter tido toda essa ajuda.
- Obrigado! Eu também tive a ajuda de Will, um amigo de família. Ele gostava muito de Martin e nos ajudou pagando o funeral. Eu tive que hipotecar a fazenda e quando eu quis pagar a dívida, o banco não queria fazer o parcelamento devido aos atrasos, apenas o pagamento a vista. Will quitou minha dívida no banco. Ele também insiste para que eu não devolva o dinheiro, no entanto, eu não posso me aproveitar da sua generosidade. É uma quantia muito grande. Ele sabe que eu não conseguiria aceitar, então me fez prometer que eu pagaria da forma que eu pudesse.
- Você tem um ótimo amigo.
- O melhor! Ele e Martin eram bons amigos.
Thompson agora tinha uma expressão carregada de tristeza.
- Você está bem?
- Estou sim. Eu superei a dor, menos a ausência. A morte é só um ponto de partida em que você diz adeus agora, para dizer olá, futuramente. Um dia eu verei meu filho. Nesse dia, já não haverá mais dor.
Eu acenei com a cabeça. Eu sabia que havia dor ali, mesmo ele dizendo que não. Eu sabia como era.
- Clearwater é um nome bonito. Por que tem esse nome?
- Clearwater foi fundada pela família de Will há muitos anos. Eles são os O'Connor. Terence O'Connor comprou terras naquela área em busca de petróleo. Ele era o mais velho de cinco irmãos. Depois que comprou as terras, ele trouxe para morar com ele, sua esposa e seus filhos. Terence começou a vender terrenos, comprar mais terras e foi investindo na cidade. Ele chamou a cidade de Clearwater, porque há várias nascentes, lagos, rios... Todos de água cristalina.
- Deve ser lindo.
- Você iria adorar, chava .
- Quem sabe? Bom e até onde você vai me levar?
- Eu estava pensando... Por que não vem comigo para Clearwater? Katherine adoraria você e Megan seria como uma amiga. Não temos luxo, mas Katherine cozinha muito bem...
- Eu agradeço, mas, não quero ser um estorvo...
- Você não é. Eu ficaria feliz se aceitasse. Eu não vou ficar tranquilo sabendo que você esta por aí, sem rumo. O mundo aqui fora é muito perigoso. Se for um tempo que você quer, então venha comigo, se não gostar, lhe colocarei no primeiro ônibus que aparecer. E se você quiser privacidade, temos a casa do nosso ex-funcionário. Ela tem tudo.
- E o que vai dizer a Katherine quando ela souber que você levou uma desconhecida para a casa dela?
- A verdade! Eu digo que a conheci em um bordel.
- Oh, meu Deus! Você é louco!
Thompson e eu, rimos.
- Acho melhor a señorita, dormir. Teremos horas de estrada. Chegaremos por volta das três da madrugada na casa do meu cunhado. Então, é bom descansar.
- Eu não disse se vou para o Texas. Talvez eu fique em qualquer outro lugar e pegue um ônibus.
- Eu a levo até a casa do meu cunhado, dormimos por lá e durante o dia você decide, ok?
- Tudo bem!
Eu me virei para tentar tirar um cochilo.
- Thompson?
- Si?
- Me chame de Lisy.
- Pode me chamar de Thom. É um prazer conhecê-la, Lisy.***
Chegamos à casa de seu cunhado, às três e quinze da madrugada. Fomos bem recebidos.
Na manhã, por volta de umas nove horas, tomamos nosso café. Meu corpo estava totalmente dolorido. Thom me ofereceu um comprimido para dor.
Fiquei com receio de que seus parentes me interpretassem mal por estar na companhia dele. Estranhamente, não fizeram perguntas. Acho que confiavam muito nele. Thom apenas disse que eu estava indo passar uns dias com sua família.
Almoçamos por lá. Ele visitou uns amigos e por volta das quatro horas da tarde, pegamos a estrada novamente, rumo a Clearwater.
Sim! Decidi ir até lá. Talvez, eu ficasse um ou dois dias e partiria.
Observei Thom ligar o rádio e sorrir para mim ao som de Amarillo By Morning.
Havia esperança brotando no meu coração.
Andale: Vamos
Chava: Menina
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UM PONTO DE PARTIDA
RomanceApós a morte de sua família, Heloyse se apegou a quem esteve do seu lado durante este momento difícil. De repente, encontrou-se abandonada, sem um rumo ou uma motivação para seguir em frente. Até que em um determinado momento da sua vida, resolve sa...