Capítulo Vinte e Oito - Além da estrada

2.2K 207 11
                                    

Davies

No outro dia, após conhecer Wallace, decidi sair e ver minha antiga casa que ficava do lado da casa dos Mitchell.
Contornei a cerca e parei na calçada. A placa de venda ainda estava lá. Seis anos depois e ninguém queria aquela casa. Todos os que moravam lá, quando sabiam do que houve, simplesmente se sentiam mal e se mudavam. Achavam que era mal assombrada. Talvez fosse, já que eu tive meus demônios ali.
Olhei para a porta da entrada e imaginei minha mãe abrindo-a e dizendo "venha Davies, o almoço está pronto".
Minhas mãos começaram a tremer.
"Até quando terei isso?"
Eu sentei em frente à porta, dobrei minhas pernas e enterrei meu rosto nelas. Eu queria tanto chorar. Malditas lágrimas que não vinham.
Foi quando um barulho familiar chamou minha atenção. A caminhonete velha do maldito, que estava mais velha ainda, parou e pude vê-lo olhando para mim, depois, seguiu caminho, virando para a estrada do pasto.
O desgraçado tinha coragem de aparecer, depois anos e tendo problemas com a justiça.
Me levantei, entrei na cozinha da Eva e peguei uma faca, colocando-a na parte de trás da minha calça e cobrindo-a com a camiseta. Saí para rua e comecei a correr.
O asfalto terminava e começava uma rua de terra. Lá, era uma grande área rural. O pasto estava alto e amarelado devido à época do ano.
Eu sabia para onde ele estava indo. Calvin comentou uma vez pra minha mãe, que Wilson sempre ia para lá, após as discussões.
Eu parei de correr e continuei andando. Andava no "piloto automático". Depois de vários minutos, eu avistei a caminhonete azul, parada na estrada.
Do outro lado da cerca, eu o vi sentado, encostado em uma árvore. A sua velha espingarda estava sobre suas pernas e na mão, uma garrafa de uísque pela metade.
Passei por baixo da cerca e parei alguns metros dele.
Eu sabia que era um risco, já que ele estava armado, mas, eu não conseguia ir embora. Eu tinha que tentar. Eu tinha que matá-lo.
Suas atitudes me mataram todos os dias.
Ele me olhou por um tempo e depois, tomou um grande gole de uísque. Levantou-se com a espingarda na mão e caminhou, como sempre, mancando. Foi para sua direita, ficando de costas pra mim e olhou longe, como se apreciasse o horizonte.
- Eu amava sua mãe - eu senti ódio das suas palavras e uma sensação de nojo tomou conta de mim. - Eu amo você também. Todo esse tempo, eu tenho sido um monstro pra você. E eu não posso mudar o que fiz.
"Você não sabe o que é amar, seu miserável!"
Eu tinha uma das mãos atrás, apertando o cabo da faca.
O homem deplorável que estava na minha frente, cuspiu no chão e começou a caminhar mais um pouco. Os passos desengonçados mostrava sua embriaguez. Observei seu chapéu branco e suas botas marrons. Fisicamente, parecia um homem, ainda assim, eu não enxergava sua humanidade. Deixei de enxergar há muito tempo.
Caminhei mais um pouco, parando assim que ele parou.
- Meu pai também me batia. Batia muito! Às vezes, eu me perguntava por que ele não me amava e ele dizia que era assim que o filho de uma vagabunda devia ser tratado. Ele sempre jogava na minha cara que eu seria um fracassado. Eu não tinha culpa se minha mãe o traiu. Porra! Eu era filho dele! - ele ficou em silêncio por uns segundos e continuou -: Depois que ela foi embora, ele começou a me agredir. Eu guardei mágoa dele por muito tempo. Ainda guardo. E sei que nos veremos um dia, no inferno - meu pai tossiu e cuspiu novamente.
"Deplorável" era um elogio, perto do seu real estado.
- Então eu cresci e fui viver minha vida. Saí de casa sem olhar para trás. Não tinha um dia que eu não sentisse a dor dos ferimentos do meu corpo, na minha alma. Então, eu bebia... Bebia pra não lembrar o rosto dele e bebia pra não lembrar que eu era filho daquele maldito desgraçado. Eu parei de beber quando conheci Angelini. E a amei muito mais quando me deu você. Éramos uma família.
"Que você destruiu!"
Ele olhou de canto para ver se eu prestava atenção no que dizia.
- Depois do problema na perna, você sabe, eu perdi o emprego e ficamos naquela situação. Eu engoli o orgulho e fui até meu pai, pedir dinheiro emprestado. Achei que os anos havia mudado aquele verme, só que eu me enganei. Eu ouvi as piores coisas que um filho podia ouvir de um pai. Ele me amaldiçoou de todas as formas e me bateu. E mesmo sendo um homem adulto, ainda assim, não consegui levantar a mão pra ele. Eu saí de lá e entrei no primeiro bar que vi. E então... Eu odiei você por eu ter caído daquele telhado. Eu culpei você. Eu odiei sua mãe, por ter me dado você.
"Para de me machucar, seu desgraçado!"
- Por que você subiu na porra daquele telhado, Davies? Eu perdi a merda do emprego e tive que me humilhar para aquele filho de uma puta. Por que você subiu na porra do telhado? - ele repetiu, agora com a voz elevada.
Ouvi Wilson chorando como uma criança. Eu dei mais uns passos e, enquanto ele estava de costas, eu puxei a faca.
O choro dele diminuiu e ele começou a falar, novamente.
- Você nunca teve culpa, não é? É tão inocente, quanto sua mãe. O ódio que tenho pelo meu pai, não justifica o que fiz. Às vezes, eu queria saber o que ele sentia quando me batia. E quando eu batia em vocês, eu sabia. Era a sensação de que você tem algo para descarregar toda a sua raiva. Quem apanha, é um alvo. Ah, sim. Miramos e acertamos - falou com a voz baixa.
"Doente!"
- Depois que minha bebedeira passava, eu sentava aqui e me sentia um lixo, como o meu pai. E até tentei não beber mais, para não cometer as mesmas coisas, mas, eu não conseguia. É um maldito vício - ele respirou fundo. - Eu tenho vergonha de pronunciar seu nome. Eu tenho vergonha de mim mesmo. Sou um monstro e não o culpo pelo que sente por mim. Mas, quero saiba que isso, o fará mal algum dia.
Eu ouvia todas as palavras que ele dizia e não tinha forças para responder.
- O ódio destrói o lado bom que temos dentro de nós. Não estou dizendo para um dia me amar, apenas que não me odeie. Eu guardo mágoa e ódio do meu pai e olha o que me tornei. Eu virei o lixo que ele é. Não seja como eu ou ele, Davies. Meu avô também batia no meu pai, mesmo depois que ele já era um homem feito e casado com a minha mãe. Você nota que isso é como a merda de uma maldição? Malditos Lewis! Somos todos uns miseráveis. Menos você. Eu sempre soube que você era diferente. Então não deixe isso que está no seu coração, consumi-lo. Eu prometo que vou sumir da sua vida, mas, não seja como eu, filho. Prometa-me!
Eu fechei meus olhos por alguns segundos e quando abri, Wilson estava me olhando. O rosto cansado e os olhos tristes. Olhei para ele por uns segundo, quando por fim, reuni forças e respondi:
- Filho? Eu não tenho pai. E preferia que você tivesse morrido e não ela. Você matou todos nós. Por que você não morre, Wilson? - eu disse com a voz trêmula.
Ele deixou algumas lágrimas caírem e voltou a ficar de costas. Eu peguei a faca e fui até sua direção. Eu estava determinado.
- Eu queria morrer. Quero muito e se eu pudesse, tinha escolhido não nascer. Durante esses seis anos, tentei viver e não consegui.
Eu parei meus passos e aquela sensação estava lá. A mesma de quando eu pensava que ia chorar, mas, o choro não vinha. Eu comecei a respirar um pouco ofegante, como se faltasse o ar e aquele tremor das minhas mãos, vieram.
Deixei a faca cair no chão.
Wilson se virou e abaixou o olhar e ficou observando a faca.
Eu não consegui. Eu me sentia um covarde.
Oh, Deus... Eu só queria correr.
Me virei e andei em direção à cerca. Antes de pisar na estrada, ele me chamou. Eu parei, mas, não olhei para trás.
- Eu te amo, Davies!
Eu levantei as mãos, tapando os meus ouvidos e puxei o ar. Eu precisava sair dali. Ele não fazia ideia de quantas vezes eu quis ouvir aquelas palavras. Mas agora, elas apenas embrulhavam meu estômago.
Passei pela cerca e caminhei de volta pelo caminho que fiz.
Depois de um tempo, eu já não o via mais, apenas sua caminhonete na estrada. Dei mais alguns passos e foi aí que ouvi. Eu sabia o que tinha acontecido. Eu ouvi o tiro.
E quando eu consegui abrir minha boca, eu gritei. Meu Deus, eu gritei o mais alto que podia. Sem lágrimas. Só grito.
E naquele dia, não havia sol. Nem um raio de sol sequer. Talvez ele estivesse bem longe... Muito além da estrada.

Se você gostar dessa história e puder contribuir com essa autora, não importa o valor, a chave pix é: 19 994092089
Se não puder, acredite, compartilhar essa história e falar dela para seus amigos, conhecidos (e até desconhecidos, rsrs) já me ajudaria bastante. ♥️ Por favor, indiquem! Eu ficaria imensamente grata!

UM PONTO DE PARTIDAOnde histórias criam vida. Descubra agora