28 - O presente - parte II

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- Tempo o suficiente para ouvir vocês matracando – explica, os olhos de lama sorrindo do quase infarto que me provocou - e não é culpa minha se você não fica atento à sua volta, cê tá ligado que assim nunca vai me conseguir acertar o soco na Aretha, né?

O tiozão pergunta porque eu bateria na minha irmã e a mamãe explica. Todos nós sabemos bater e apanhar, mas eu e Vi nunca conseguimos acertar o rosto da Aretha, a bicha é muito rápida, a gente telegrafa ou ela adivinha, não sei, mas a mana é ninja.

Ele confirma se minhas tataguens são homenagem ao vô Augusto, admito que sim e ele aprova o gesto, uma merda não ter conhecido meu avô, quer dizer, sem contar meus sonhos-memórias-alucinações. Ouço o cara falar que podemos ficar por mais uma hora e minha mãe pede um tempo sozinha comigo.

- Gostei dele - Digo indo me sentar ao lado dela – por que não é chegado lá de casa?

- Porque tenho alergia à cana – responde colocando os coturnos no encosto da frente.

- Mas o coração dele tá no lugar certo – defendo - e o cara mudou o propósito de vida por causa do seu gesto no viaduto.

- Só tem um cana digno da minha confiança, bom coração ou não - abro a boca pra perguntar de quem se trata, mas ela interrompe – pega a mochila, pega, não puxa - diz quando me inclino sobre a cadeira da frente, tinha deixado a mochila nos meus pés.

- É nosso presente de aniversário pra você.

- Mas o pai disse que me daria em Brasília.

- É meu e da minha mãe.

- Minha avó Virgínia deixou alguma coisa pra mim?

- Eu te amo Fred e não é só porque a sociedade me obriga – explica com cara de tédio - mas você precisa parar de perguntar tanto!

- Mas...

- Moleque, me dá a porra.

Com a mochila em mãos se acomoda na cadeira, retira um embrulho em furokushi e me entrega. Nos fitamos e sorri, os olhos cheios de uma mistura de amor e saudades.

O embrulho é pesado e desato o nó do tecido que se abre no meu colo, é uma caixa de madeira fina, mas resistente, destampo e encontro a primeira folha com o título: A Rainha Ati, por Virgínia Sales Saavedra, acaricio as letras datilografas, Saavedra é da minha bisavó materna e Furquim do meu bisavô paterno, temos descendência portuguesa dos dois lados. Duas lágrimas gordas escorrem no rosto da minha mãe e sorrimos um para o outro.

- Minha avó escreveu um livro? É daí que vem sem nome diferentão? - diz sim balançando a cabeça, os cabelos escuros e lisos pelos ombros. As páginas são soltas e numeradas, algumas datilografadas, outras impressas em computador antigo, são amareladas e têm anotações à caneta e lápis. Outras estão grifadas, parecem finas e com cuidado tomo as folhas que possuem duas diferentes grafias – Vô Augusto? - pergunto indicando a letra de forma.

- Ele mesmo - responde. Prossigo na curiosidade e lá para o final encontro impressões recentes.

- Você tentou continuar?

- Tentei, mas parei, acho que estava esperando por você.

- Por mim?

- Meu pai fez sugestões, eu continuei e agora é sua vez de terminar a história. Você e a mamãe vão lançar o livro aqui – abre os braços indicando o theatro.

- Mãe, eu tô honrado, na real – sacudo a cabeça descrente – mas não sou escritor - uma nota de humor vibra nos olhos de mel, provavelmente quer fazer comentário sarcástico, mas deixa passar, contemplo os papéis com vago cheiro de sândalo e devagar miro o palco à nossa frente.

Retorno ao romance incompleto, abro a primeira página e leio  o prefácio em silêncio:

Rainha Ati

 Virgínia Sales Saavedra

Quando abriu os olhos a cor não era natural, o verde das matas hipnotizava, vibrava, intenso. Os meses passaram e o verde intenso tornou-se frágil, por fim dilui-se no verde das águas, rio tão belo que mergulhar era a única opção. Antes que completasse um ano o delicado verde fez-se marrom, a cor intensa de terra vibrava como a outra, mas dessa vez a força era perigosa, provocava transe. Não fechava os olhos para mamar, nunca dormiu enquanto éramos uma só. Os olhos intensos fitavam os meus e sentia que éramos somente eu e ela, sugava como se arrancasse de mim algo além do que o leite materno proporciona, me pedia força. Ansiosa eu aguardava as horas de siso e acompanhava a cor de terra perder intensidade, aos poucos assemelhava-se ao mel que seu pai vertia sobre minha pele. Antes que completasse dois anos o mel desmanchou-se, a força de outrora se fez em incógnita, os olhos pareciam selar segredos de séculos. Dia após dia eu esperava, amava e sorria acompanhando o matiz se espalhar, como terra agitada no fundo do ribeiro, via os grãos ínfimos pintarem a superfície fazendo lama. Numa noite a mudança cessou, como se estivesse pronta. Continuávamos a fitar uma a outra, decorávamo-nos, aos poucos as forças das matas e terras, vegetação e correntes se tornaram mais poderosas e donas de tudo, a combinação das intensidades agora residia nos olhos claros de água, muitas e poderosas águas. Ati nunca foi princesa, Ati nasceu rainha.

- Eu aceito! - digo por fim, ela me abraça e deita a cabeça no meu ombro, sem dizer palavra me ensina a enrolar o furokushi e guardamos o embrulho na mochila que fica segura nas minhas costas, me oferece a mão e passos depois atravessamos as coxias.

922 palavras

FredOnde histórias criam vida. Descubra agora