Eu ainda estava na cozinha, as duas mãos apoiadas na bancada de mármore e a cabeça pendendo para trás, tentando me recompor, quando Enid entrou, ficando brevemente surpresa com a minha presença.
- Desculpa, eu esqueci que você estava aqui - ela estava prestes a se retirar, quando algo a fez parar - espera, você está bem?
- Estou bem, Nid - dei um sorriso fraco, virando-me na direção dela, apesar da distância entre nós, sem conseguir impedir meu cérebro de fazer inúmeras associações a cada milésimo de segundo em que eu a olhava. Não se passou nem dez minutos e aquela ligação já estava me deixando louca.
- Eu não quero ser rude, Wed, mas parece que você acabou de ver uma assombração. Tem certeza que não está se sentindo mal? - a medida que ela ia falando, tão inocente e ingênua, mas ainda assim se preocupando com outra coisa além dela mesma, meu coração ia se apertando.
- Estou bem, meu amor - minha voz saiu fraca - vem aqui - instantaneamente, sem hesitar um segundo, ela atravessou a cozinha e se aproximou, ficando a meio metro de mim.
Sem incertezas, dei um passo à frente e a abracei, numa tentativa idiota de fingir que aquilo apagaria a realidade dela. Aspirei seu cheiro doce e, em seguida, me separei dela, segurando seu rosto entre minhas mãos - eu não quero que fiquemos mal uma com a outra, Enid. Me desculpe por não ter conversado com você ontem.
Ela conseguiu me encarar por alguns segundos, antes de baixar o olhar.
- Eu também não quero isso, Wednesday - eu podia ver o esforço que ela fazia para expressar qualquer tipo de sentimento, como se sentir qualquer espécie de emoção fosse algo proibido - e eu confio em você, não é verdade que eu não confio.
- Eu sei, Nid. Me desculpe por isso também, eu não pensei antes de falar aquilo.
- Tudo bem, eu te desculpo - ela oscilou por um instante - aliás, posso te perguntar uma coisa?
- Temo que já esteja perguntando - brinquei, numa tentativa bem-sucedida de aliviar a tensão, e ela rolou os olhos.
- Você não consegue ser uma pessoa séria por pouco mais de um minuto, não é, Wednesday Addams?
- Força do hábito - fiz o sinal de zíper na boca - pode perguntar - ela deu um sorriso genuíno, que fez seus olhos ficarem apertados, e eu me dei conta da pequena quantidade de vezes que eu a via sorrir com sinceridade.
- Então, por que você está assim? Digo, esses dias vem acontecendo, você está bem e muda, de repente. É por minha causa, não é? Eu-
- Hey, não, Enid! - a interrompi - é claro que não é você! Você não me causa nada negativo. Pelo contrário, você é incrivel, totalmente incrivel, você me deixa feliz e... - quando me dei conta, Enid estava tão vermelha quanto um morango.
- Por que parou de falar? - ela perguntou, o olhar pairando para qualquer lugar na sala que não fosse eu.
- Você está tão corada e eu estou me permitindo admirar.
- Wednesday! - ela cobriu o rosto com as mãos.
- Deixe-me ver! Você está me impedindo de ver uma coisa muito linda! Que crime! - tentei tirar as mãos dela do rosto, mas ela intensificou a força.
- Não! - a voz saiu abafada - você é muito chata, Wednesday!
- Okay, você me obrigou a isso - fiz cócegas suaves em sua barriga, ciente de que podia ter contusões, e ela tirou as mãos do rosto com urgência, se curvando e recuando do meu toque.
- Para, para, para! - sua gargalhada era música para os meus ouvidos.
- Você vai ter que implorar - subi as cócegas para o pescoço e ela se contorcia.
- Por favor, eu imploro! - ela tentava de qualquer jeito parar minhas mãos com as suas.
Parei e segurei suas mãos.
- Okay, eu paro, mas só porque você implorou.
- Você é insuportável, Wednesday!
- Hmm.. mas você gosta, não gosta? - baguncei o cabelo dela e, num gesto inofensivo, me inclinei para beijar sua bochecha. Mas Enid se surpreendeu com o ato e virou-se para mim, fazendo com que o beijo fosse uma colisão entre nossos lábios. Uma colisão acidental, da qual fizemos questão de que durasse alguns bons segundos.
Sabe quando algo acontece e é tão surreal, que nada passa por sua mente? Só a sensação pura. Olhos fechados, lábios macios, o calor da brincadeira que estávamos fazendo minutos atrás.
Mas não tivemoss nem tempo de processar, pois, no mesmo instante, Sophia, Yoko e Olivia entraram na cozinha e Enid se afastou bruscamente de mim, seus olhos bem abertos.
Oh, merda.
- Interrompemos alguma coisa? - Olivia perguntou e eu teria morrido de vergonha ali mesmo, se não fosse minha preocupação com Enid, que estava branca como um fantasma, os olhos vidrados em mim.
- Huh... não. Eu estava conversando com a Nid - dei um sorriso tranquilizador para Enid, afagando seu ombro, implorando para que ela entendesse a mensagem "hey, está tudo bem" - nós vamos ensaiar a apresentação agora.
- Hm... - Olivia assentiu, numa troca de olhares com Sophia, algo ciente em seus olhos.
- Ainda bem! - Yoko interrompeu e eu a agradeci mentalmente por isso - eu estava sentindo falta dos ensaios.
- É! - agradeci mentalmente - então, vamos? - sorri amarelo.
As meninas se dirigiram ao estúdio e eu fui logo atrás, seguida de Enid, que ainda parecia chocada com o que acabara de acontecer.
Lá chegando, eu expliquei, ou tentei explicar, da melhor maneira possível, como eu gostaria que fosse a apresentação e as partes de cada uma.
Ensaiamos algumas vezes, até chegar numa harmonia perfeita entre elas. Eu não podia ficar mais satisfeita. Cada uma delas tinha uma potência incrivel, fazendo a apresentação ficar impecável em sua combinação.
- Okay, meninas, se mantenham assim. Vocês funcionam muito bem em conjunto. Estou realmente orgulhosa.
- Claro né, Wednesday. Juntando nós quatro, você esperava o que? - Sophia brincou, fazendo as meninas rirem.
- Modesta você, não é, Sophia?
- Sempre assim - Olivia revirou os olhos, recebendo um beijo de Sophia no rosto, que foi afastada para longe com graça por Olivia - ensaiamos mais uma vez depois?
- Claro - respondi.
- Mas agora vamos preparar o almoço, antes que morramos de fome - Sophia voltou a falar e eu concordei.
- É, à tarde eu vou precisar sair para resolver alguns assuntos.
- Você vai estar aqui no fim da noite? - com todo esforço, Enid finalmente olhou para mim.
- Sim. Até depois do fim - lhe ofereci um sorriso e sua expressão suavizou.
- Nossa, isso foi tão... romântico - Sophia gracejou, recebendo um cutucão de Yoko.
- Não enche, Sophia - dei um leve empurrãozinho nela, empulsionando-a a caminhar para fora da sala, sendo seguida por todas as outras.
Fomos à cozinha e nos dividimos para fazer um bom almoço de boas-vindas de volta para Yoko. O tempo todo eu tentava me aproximar de Enid, mas ela parecia distraída demais para interagir comigo ou qualquer outra pessoa. Não parecia algo necessariamente ruim como hoje mais cedo, mas ela de fato estava absorta em seus próprios pensamentos.
Lembrei da gravação.
Talvez esse fosse o pensamento que eu mais estivesse evitando nas últimas horas, eu o evitava furiosamente. Ainda assim, florescia em mim o medo de que eu descobrisse nessas gravações, algo além do abuso físico e emocional. Algo que talvez fosse motivo o suficiente para Enid temer qualquer tipo de relacionamento pelo resto de sua vida.
***
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Silhouettes
FanfictionDepois de passar quase toda sua vida sendo abusada em sua própria casa, Enid Sinclair vai finalmente conhecer o mundo exterior. Em busca do prêmio em dinheiro que o melhor excluído irá ganhar no fim de uma competição que acontecerá na Escola Nunca...