- Estou tão orgulhoso de você, Enid! - meu tio fala, me dando um falso abraço.
Assim que o funcionário se afasta de nós, porém, ele agarra meu braço com força e sai me arrastando habilmente pelo corredor até a parte de fora do prédio, indo direto para o estacionamento, onde estava o carro dele.
- Tio... - tento começar minha sessão de lamentação, enquanto ele abria a porta do carro, me jogando para dentro.
- Nem mais uma palavra - ele fala entredentes.
- Por favor..
- O QUE EU ACABEI DE DIZER? - ele rosna.
Desisto. Me calo imediatamente. Eu já sentia dor o suficiente por hoje mais cedo, eu não iria aguentar mais, não agora.
Tudo bem, Enid, tento me consolar , tudo bem. Eu vou entrar em Nunca Mais. Weems, Morticia e Wednesday gostaram de mim. Eu não merecia tanta coisa boa, então o que meu tio fizesse agora serviria só para balancear minha sorte, certo?
Passo o resto do caminho tentando controlar o nervoso que corroía meu estômago ao pensar no que estaria me esperando em casa.
Assim que chegamos em frente à sua casa, ele me empurra em meu assento ainda no carro.
- Você está ferrada! - ele sussurra de forma diabólica.
- Por favor, tio, desculpa. Eu não vou fazer mais nada assim. Não foi minha intenção - imploro, lutando contra as lágrimas que queriam descer.
Regra número 1: Você não pode chorar quando está sendo punida.
Ele ignora meus pedidos e me arrasta para fora do carro até a entrada da casa. Em seguida, abre a porta com um baque e me joga para dentro, me fazendo cair no carpete.
- O que combinamos?
- Que eu estava nervosa, com enjoo e-
- E VOCÊ ME APARECE COM ESSA HISTÓRIA IDIOTA DE TER APENDICITE! - ele vocifera, vindo em minha direção, me levantando pelos ombros, me deixando a altura de seus olhos, enquanto me sacudia.
Mas logo em seguida ele me solta, me encarando com ódio.
- Por favor, me desculpe, eu só achei que Wednesday percebeu que-
Era melhor ter ficado calada. Ele não se esforçou em se conter, deu uma bofetada em meu rosto que me fez ficar zonza na mesma hora.
Regra número dois: Não adianta falar nada quando você estiver errada e você sempre está errada.
- ENTÃO A CULPA É SUA! - ele berra, chutando minhas pernas, me fazendo cair de novo. Ele, então, chuta meu estômago com força, fazendo eu me encolher, me arrastando para o canto da sala.
Eu não estava chorando. Eu não podia chorar.
- Desculpa - gemi, tentando acalmá-lo. Às vezes, muito raramente, funcionava - você é mais inteligente que eu, da próxima vez eu vou fazer o que você mandar.
- MAS É CLARO QUE VOCÊ VAI! - ele volta a gritar. Fecho os olhos e ouço o barulho da fivela do cinto. Não, não, não. Eu não iria aguentar.
Concomitante ao pensamento, sinto o cinto queimar minhas costas e me encolho o máximo humanamente possível.
- De quem é a culpa? - ele pergunta, enquanto continua a fazer o cinto lamber minhas costas.
Mordo meu lábio pra não escapar nenhum gemido por causa da dor, ele odiava que eu fizesse isso.
- A culpa é minha - respondo, automaticamente.
Regra número três: Você sempre deve respondê-lo com o que ele deseja ouvir.
Ele continuou a me bater com o cinto, atingindo meus braços e minhas pernas, deixando tudo coberto de vergões vermelhos. Enfim, ele me levanta mais uma vez pelos ombros antes de sair.
- Nem pense que você vai jantar hoje - ele fala e chuta minhas pernas de novo, me levando ao chão mais uma vez e indo para a cozinha para pegar uma bebida.
Ele iria para o meu quarto mais tarde. Se não hoje, amanhã. Ele sempre ia.
[...]
Me encolho no canto do quarto. Eu queria minha mãe. Por que ela teve que morrer? No começo até que dava para aguentar, ele me ignorava na maior parte do tempo. A assistente social nos visitou algumas vezes no primeiro ano e depois parou. Depois que minha tia se foi, foi aí que o abuso começou.
Mas eu não me importo. Eu aguento isso, não preciso de ajuda. É meu segredo, porque se alguém descobrisse, iriam saber que eu sou uma pessoa tão ruim que nem minha família me ama. Que eu sou inútil.
[...]
SEXTA-FEIRA
Abro os olhos devagar e sinto como se não tivesse dormido nem um minuto. Me mexo na cama devagar. Minhas costas estavam doloridas e queimando e eu mal podia mexer o pescoço. Sinto meu estômago revirar e olho para a porta.
Merda.
Café da manhã. Meu tio.
Levanto às pressas e quase caio quando sustento o peso do meu corpo de pé, não tinha um centímetro do meu corpo que não doesse.
Um pouco mais devagar, desço as escadas, eu tinha que fazer o café antes dele acordar. Entro na cozinha na ponta dos pés e pego o que preciso, sem fazer barulho para não acordá-lo. Felizmente eu tive o tempo que precisava.
Uns dez minutos depois, quando eu já estava acabando, ele entra na cozinha e desaba numa cadeira.
- Aqui, tio - coloco o prato na frente dele.
Ele começa a comer, enquanto lê o jornal de hoje.
- Você tem planos para hoje? - ele pergunta.
- N-não - gaguejo. Por que ele estava perguntando isso? Eu nunca saia de casa. Ele queria que eu fizesse algo?
- Hoje é sexta - ele fala, como se não acreditasse em mim, como se me lembrasse de algo.
- Ah, sim. Eu quis dizer, tenho! Não foi minha intenção mentir, eu tinha esquecido, eu tenho que voltar à Nunca Mais hoje. Desculpa! - ele me encara desapiedosamente. Merda.
- Enid Sinclair, nunca minta para mim. - ele quase sussurra, para em seguida gritar - ENTENDEU?
Regra número quatro: Nunca minta.
- Sim, senhor. Desculpa.
- Você não tem aula hoje, tem? - Eu não ia à escola. Claro que eu não tinha aula hoje. Então me liguei, ele estava me treinando para caso surgissem perguntas em Nunca Mais.
Balancei minha cabeça negativamente.
- Ah, não. Você não tem aula. Por que você não tem aula?
Eu sabia a resposta.
- Porque eu fui educada em casa.
- Por que você foi educada em casa?
Eu não podia mentir para ele como eu mentiria lá. Ele estava me testando. Regra número quatro.
- Porque os outros alunos não gostavam de mim.
- POR QUÊ? - ele rosna, perdendo a paciência.
- Porque eu não sou boa o suficiente para outras pessoas gostarem de mim - minha voz sai num pequeno fio.
Ele sorri satisfeito e acena com a mão, me mandando sair.
Subo para o quarto.
Fico pensando em como já repeti essas coisas tantas vezes, que agora não consigo saber se é verdade ou não. As palavras saem da minha boca e eu já não sinto mais nada. Ultimamente tem sido assim, eu não sinto mais nada. Esses pensamentos deveriam me deixar triste, mas nem assim eu era capaz de me sentir.
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Silhouettes
FanfictionDepois de passar quase toda sua vida sendo abusada em sua própria casa, Enid Sinclair vai finalmente conhecer o mundo exterior. Em busca do prêmio em dinheiro que o melhor excluído irá ganhar no fim de uma competição que acontecerá na Escola Nunca...