Capítulo 2

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- Estou tão orgulhoso de você, Enid! - meu tio fala, me dando um falso abraço.

Assim que o funcionário se afasta de nós, porém, ele agarra meu braço com força e sai me arrastando habilmente pelo corredor até a parte de fora do prédio, indo direto para o estacionamento, onde estava o carro dele.

- Tio... - tento começar minha sessão de lamentação, enquanto ele abria a porta do carro, me jogando para dentro.

- Nem mais uma palavra - ele fala entredentes.

- Por favor..

- O QUE EU ACABEI DE DIZER? - ele rosna.

Desisto. Me calo imediatamente. Eu já sentia dor o suficiente por hoje mais cedo, eu não iria aguentar mais, não agora.

Tudo bem, Enid, tento me consolar , tudo bem. Eu vou entrar em Nunca Mais. Weems, Morticia e Wednesday gostaram de mim. Eu não merecia tanta coisa boa, então o que meu tio fizesse agora serviria só para balancear minha sorte, certo?

Passo o resto do caminho tentando controlar o nervoso que corroía meu estômago ao pensar no que estaria me esperando em casa.

Assim que chegamos em frente à sua casa, ele me empurra em meu assento ainda no carro.

- Você está ferrada! - ele sussurra de forma diabólica.

- Por favor, tio, desculpa. Eu não vou fazer mais nada assim. Não foi minha intenção - imploro, lutando contra as lágrimas que queriam descer.

Regra número 1: Você não pode chorar quando está sendo punida.

Ele ignora meus pedidos e me arrasta para fora do carro até a entrada da casa. Em seguida, abre a porta com um baque e me joga para dentro, me fazendo cair no carpete.

- O que combinamos?

- Que eu estava nervosa, com enjoo e-

- E VOCÊ ME APARECE COM ESSA HISTÓRIA IDIOTA DE TER APENDICITE! - ele vocifera, vindo em minha direção, me levantando pelos ombros, me deixando a altura de seus olhos, enquanto me sacudia.

Mas logo em seguida ele me solta, me encarando com ódio.

- Por favor, me desculpe, eu só achei que Wednesday percebeu que-

Era melhor ter ficado calada. Ele não se esforçou em se conter, deu uma bofetada em meu rosto que me fez ficar zonza na mesma hora.

Regra número dois: Não adianta falar nada quando você estiver errada e você sempre está errada.

- ENTÃO A CULPA É SUA! - ele berra, chutando minhas pernas, me fazendo cair de novo. Ele, então, chuta meu estômago com força, fazendo eu me encolher, me arrastando para o canto da sala.

Eu não estava chorando. Eu não podia chorar. 

- Desculpa - gemi, tentando acalmá-lo. Às vezes, muito raramente, funcionava - você é mais inteligente que eu, da próxima vez eu vou fazer o que você mandar.

- MAS É CLARO QUE VOCÊ VAI! - ele volta a gritar. Fecho os olhos e ouço o barulho da fivela do cinto. Não, não, não. Eu não iria aguentar.

Concomitante ao pensamento, sinto o cinto queimar minhas costas e me encolho o máximo humanamente possível.

- De quem é a culpa? - ele pergunta, enquanto continua a fazer o cinto lamber minhas costas.

Mordo meu lábio pra não escapar nenhum gemido por causa da dor, ele odiava que eu fizesse isso.

- A culpa é minha - respondo, automaticamente.

Regra número três: Você sempre deve respondê-lo com o que ele deseja ouvir.

Ele continuou a me bater com o cinto, atingindo meus braços e minhas pernas, deixando tudo coberto de vergões vermelhos. Enfim, ele me levanta mais uma vez pelos ombros antes de sair.

- Nem pense que você vai jantar hoje - ele fala e chuta minhas pernas de novo, me levando ao chão mais uma vez e indo para a cozinha para pegar uma bebida.

Ele iria para o meu quarto mais tarde. Se não hoje, amanhã. Ele sempre ia.

[...]

Me encolho no canto do quarto. Eu queria minha mãe. Por que ela teve que morrer? No começo até que dava para aguentar, ele me ignorava na maior parte do tempo. A assistente social nos visitou algumas vezes no primeiro ano e depois parou. Depois que minha tia se foi, foi aí que o abuso começou.

Mas eu não me importo. Eu aguento isso, não preciso de ajuda. É meu segredo, porque se alguém descobrisse, iriam saber que eu sou uma pessoa tão ruim que nem minha família me ama. Que eu sou inútil.

[...]

SEXTA-FEIRA

Abro os olhos devagar e sinto como se não tivesse dormido nem um minuto. Me mexo na cama devagar. Minhas costas estavam doloridas e queimando e eu mal podia mexer o pescoço. Sinto meu estômago revirar e olho para a porta.

Merda.

Café da manhã. Meu tio.

Levanto às pressas e quase caio quando sustento o peso do meu corpo de pé, não tinha um centímetro do meu corpo que não doesse.

Um pouco mais devagar, desço as escadas, eu tinha que fazer o café antes dele acordar. Entro na cozinha na ponta dos pés e pego o que preciso, sem fazer barulho para não acordá-lo. Felizmente eu tive o tempo que precisava.

Uns dez minutos depois, quando eu já estava acabando, ele entra na cozinha e desaba numa cadeira.

- Aqui, tio - coloco o prato na frente dele.

Ele começa a comer, enquanto lê o jornal de hoje.

- Você tem planos para hoje? - ele pergunta.

- N-não - gaguejo. Por que ele estava perguntando isso?  Eu nunca saia de casa. Ele queria que eu fizesse algo?

- Hoje é sexta - ele fala, como se não acreditasse em mim, como se me lembrasse de algo.

- Ah, sim. Eu quis dizer, tenho! Não foi minha intenção mentir, eu tinha esquecido, eu tenho que voltar à Nunca Mais hoje. Desculpa! - ele me encara desapiedosamente. Merda.

- Enid Sinclair, nunca minta para mim. - ele quase sussurra, para em seguida gritar - ENTENDEU?

Regra número quatro: Nunca minta.

- Sim, senhor. Desculpa.

- Você não tem aula hoje, tem? - Eu não ia à escola. Claro que eu não tinha aula hoje. Então me liguei, ele estava me treinando para caso surgissem perguntas em Nunca Mais.

Balancei minha cabeça negativamente.

- Ah, não. Você não tem aula. Por que você não tem aula?

Eu sabia a resposta.

- Porque eu fui educada em casa.

- Por que você foi educada em casa?

Eu não podia mentir para ele como eu mentiria lá. Ele estava me testando. Regra número quatro.

- Porque os outros alunos não gostavam de mim.

- POR QUÊ? - ele rosna, perdendo a paciência.

- Porque eu não sou boa o suficiente para outras pessoas gostarem de mim - minha voz sai num pequeno fio.

Ele sorri satisfeito e acena com a mão, me mandando sair.

Subo para o quarto.

Fico pensando em como já repeti essas coisas tantas vezes, que agora não consigo saber se é verdade ou não. As palavras saem da minha boca e eu já não sinto mais nada. Ultimamente tem sido assim, eu não sinto mais nada. Esses pensamentos deveriam me deixar triste, mas nem assim eu era capaz de me sentir.

SilhouettesOnde histórias criam vida. Descubra agora