O medo alimenta a fome na alma das pessoas.
Passei muitos anos da minha vida até entender que com medo somos incapazes de viver realmente. Lembro de ouvir meu pai dizer quando eu ainda era apenas uma criança: "Você está livre de qualquer algema, Hazel. Você está livre para voar. Não deixe que o mundo te arraste para baixo."
E ele estava certo.
Meu pai nunca fez parte do tipo de pessoa que me impunha limites. Pelo contrário, eu cresci ouvindo seus concelhos e todos eles diziam "voe". Sim, mais do que nunca eu precisava voar e alcançar aquilo que era meu por direito: a liberdade.
Quando a cela fora aberta e eu finalmente pude, pela a primeira vez dentro de 3 horas trancafiada, respeitar o ar puro, eu fui fuzilada pelos olhos azuis do casal de meia idade a minha frente. E aquilo me paralisou e me arrancou o chão.
Eram meus avós.
— Hazel! — A senhora Jenner foi a primeira a anunciar e todos os outros que estavam na recepção olharam para mim.
Silêncio.
E lá estava eu sendo bombardeada por pensamentos e comentários maldosos que nem mesmo Deus suspeitaria.
Aquilo era corrosivo. Me deixava sem fôlego e paciência. Metade de mim desejava apenas enterrar-me dentro de um buraco, e a outra, passar por todos ali presente e sair sem dar nenhuma explicação.
— Minha menina! — Foi a vez do senhor Jenner falar, ele cujo os olhos estavam molhados. — Que bom te ter aqui do lado de fora.
Veio me abraçar, mas eu recuei antes que o fizesse.
Olhei para ele e para sua esposa sem dizer uma palavra, sem demonstrar nenhum sentimento e sem dizer sequer uma palavra.
Eu não sentia nada por eles. Absolutamente nada.
Eles fizeram da minha adolescência um inferno, eu não deixaria que eles e suas malditas bocas se abrissem para me julgar. Já bastava todos os meus problemas e a tempestade de sentimentos que eu estava enfrentando. Eu precisava unicamente de paz.
Meus olhos foram direito a encontro dos de Pierre. Ele sorriu.
E foi um sorriso aliviado, doce e meigo como eu não vislumbrava há tempos. Era como se o menino Pierre tivesse voltado da adolescência apenas para dar aquele sorriso e em seguida evaporar na escuridão que ele reluz.
— Que bom te ver. — Ele suspirou aliviado, uma mão na cintura e a outra na cabeça bagunçando o cabelo afro.
— Oh, graças a Deus esse inferno teve fim. Agora você está livre, querida. Pode contar comigo para o que precisar. — Victor se aproximou dizendo. — Quer uma carona até em casa? Você deve estar cansada.
— Não se preocupe, Montgomery. Eu posso levar minha neta. — O meu avô foi dizendo, agregando-me pelos ombros. — Vamos, Hazel.
Me puxou, mas eu me recusei a sair do lugar.
— Aonde pensa que está me levando? — Cruzei os braços e o encarei.
Sorriu desconcertado e até um tanto irritado.
— Para nossa casa, filhinha.
— Não, eu não vou para a sua casa, Sr. Jenner. — Eu cuspi as palavras e o espanto em seu olhar foi incontrolável.
— Como não? Para onde mais você poderia ir? — Minha avó fuzilou-me com o olhar. Ela era fã da boa imagem da família e não deixaria que eu estragasse isso mais ainda.
Eu fiquei sem palavras. Eu era bolsista em tempo integral na faculdade, então obviamente eu estaria expulsa até que o caso fosse averiguado pela justiça. Eu não tinha para onde ir, e mesmo se tivesse, Dinah e Sabine jamais me deixariam voltar para o dormitório.
Meu desconforto era palpável e a minha mente dava nós.
— Ela vem comigo, Sr. Jenner. — Pierre disse, abrindo espaço em meio a multidão e um buraco negro na minha alma.
Eu olhei para ele. Ele não olhava para mim.
Meu corpo estava em chamas enquanto o meu coração de gelo derretia aos poucos. O que ele tinha feito comigo? Como ele tinha feito aquilo? Como ele me fez sentir uma merda em um momento e no outro o desfez?
Ele parecia brincar comigo como se eu fosse uma massinha de modelar. Ele gostava de me manusear e me fazer ganhar as formas que mais se encaixavam no imaginável no exato momento.
Ele parecia gostar de me jogar no inferno e logo após salvar a minha alma. Ele gostava. Oh, eu sei que gostava.
— Isso é um absurdo! — O meu avô exclamou e eu vi sua esposa tentar acalma-lo em vão. — Hazel não pode sair com você, seu merdinha. Você é um marginal!
Para meu avô e sua esposa, todos os negros eram.
— Não fale assim com o meu filho. Eu não admito isso. — Carmen tomou a frente, mas fora ignorada.
— E você é um racista do caralho que não sabe manter nem mesmo a sua própria dignidade. — Pierre foi dizendo suavemente sem elevar a voz, diferentemente dos outros.
— Isso é uma acusação? — Sr. Jenner parecia estar a ponto de ter um ataque de nervos.
— Não. — Pierre respondeu seriamente, mas em seu olhar a resposta era "sim".
Eu estava paralisada. Meu corpo estava fraco e a minha alma também. Eu estava cansada de tantas discussões, do meus avós racistas que nunca aceitaram minha amizade com o vizinho, daquele cheiro podre de delegacia e do peso em meu coração. Eu só queria um lugar grande o suficiente onde eu pudesse me deitar e relaxar, mas pequeno o suficiente para não ser descoberto por mais ninguém.
— Acho melhor vocês se acalmarem. — Victor sugeriu autoritário, olhando para o policial de plantão que pegava uma água no bebedouro logo ali. — A cota de problemas por hoje já está esgotada. Vamos embora.
Pierre olhou para mim e eu assenti com a cabeça. Ele sorriu se aproximando de mim.
— Bom, se me permite... — Passou o braço por cima dos meus ombros, me encaixando perfeitamente na lateral do seu corpo —, vou levar Hazel para longe desse inferno. Foi um prazer rever você, Sr. Jenner.
— Mas o quê? Hazel, como você pode confiar nesse moleque? — Ele não conseguia entender. Nem eu.
Eu olhei para ele por cima dos ombros enquanto seguia até a saída da delegacia e não respondi nada.
Eu não aprendi a fazer silêncio. Eu aprendi a ser silêncio. Eu poderia falar muitas coisas, mas o mais importante ninguém jamais iria ouvir.
Quando saímos e eu senti o sol e a brisa fresca num sopro de vida bater bem no fundo da minha alma, eu respirei profundamente e soltei devagar. Olhei para Pierre que já olhava para mim. Seus olhos castanhos brilhavam ainda mais quando estávamos expostos a luz do dia.
— Para onde vamos agora?
— Uma hora a gente descobre. — E me puxou pelo o braço me arrastando para longe dali e de mim.
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FLY
RomanceLIVRO COMPLETO NO HINOVEL, DISPONÍVEL PARA ANDROID E IOS. Hazel Jenner assinou a sua própria sentença de morte ao se apaixonar por Pierre. Ele era problemático. Tudo naquele homem brilhava e queimava. Hazel acreditou que poderia salvá-lo, mas cada...