o v e r d o s e

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Na manhã seguinte...

Era uma daquelas manhãs chuvosas em Bistrol. O relógio marcava exatas 7:00 horas e temperatura ambiente de 15° graus Celsius.

Não era algo surpreendente de se ver, mas era única e exclusivamente reservada para mim. Minha intuição dizia que seria um dia difícil, embora meu coração tentasse ser otimista.

Sentada no batente da janela do quarto - que apesar de estreito tinha espaço suficiente para o meu quadril largo - eu olhava as gotículas de chuva acumuladas no vidro embaçado. Lá fora, as luzes dos edifícios de Bistrol tentavam dizer algo sobre o amor, eu não entendia o quê.

Talvez o amor estivesse em falta naqueles dias difíceis e enxergar o que ninguém põe fé é loucura.

Mas eu conseguia enxergar. E não era uma imagem bonita, era perturbadora, distorcida de mil maneiras e vazia.

Aquela era uma manhã estranha, reservada apenas aos loucos, fugitivos e aos apaixonados.

Eu me encaixava nas três vagas abertas. Sim, eu era louca por Pierre, fugitiva desse desejo e apaixonada por aquela sensação de ter tudo em mãos e ao mesmo tempo nada.

E eu era vazia como aquela manhã chuvosa. E eu era vazia como um infinito de caos.

Meu cigarro queimava lentamente entre meus dedos enquanto eu analisava a cena diante dos meus olhos. Estava perdida em meus pensamentos. Perdida em minhas memórias. Perdida em meu corpo. Tão perdida quanto a minha alma. 

Mas de alguma maneira tudo se encaixava deixando uma única dúvida perpétua vagando pelas profundezas do meu subconsciente: "Por quê?"

Por que Pierre me tratava tão mal? Por que ele me odiava? Por que nada fazia sentido? Por que diabos eu não parava de me perguntar o que jamais conseguiria responder?

Bufei com raiva e revirei os olhos ao dar um trago no cigarro.

Sai do batente da janela e andei até ficar de frente ao espelho.

Senti um enjôo e uma pontada aguda no estômago. Isso me fez questionar pela primeira vez em tanto tempo qual fora a minha última refeição.

A lembrança de um prato cheio de arroz, feijão, carne e salada era vaga, e eu podia jurar até que ela sequer existia. 

Revirei os olhos novamente, dando outro trago no cigarro.

Encarei a garota do espelho.

Ela estava mais magra e abatida desde a última vez que nos encontramos. Tinha olheiras profundas envolta dos grandes olhos que naquele instante eram escuros como o céu sem estrelas. Sua boca carnuda estava ressecada. As maçãs das bochechas sobressaltadas e sem rubor.

Ela levantou a regata branca que usava deixando os seios e a calcinha box preta amostra.

Eu a olhei mais decididamente, tentando notar o que havia de diferente.

Seus seios redondos estavam iguais a última vez em que os vi, mas sua barriga não. Os ossos eram quase visíveis e aquilo era desconfortável porque nunca fora algo desejado por mim. A magreza em meu corpo não era saudável, eu sabia disso.

O quadril largo da garota do espelho continuava igual. E o cabelo vermelho dela preso em um coque frouxo no topo da cabeça também, apesar de um pouco mais bagunçado do que normalmente estaria.

Bem, eu estava diferente e entendia que aquilo não era tão bom.

Dei um trago no cigarro, apanhei a regata do chão e me vesti. Não queria mais olhar no espelho e enxergar o que de pior havia em mim porque aquela era uma tortura horrorosa.

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