o v e r d o s e

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A partir daquele instante eu percebi que nada seria como antes. Yago transtornado, Pierre um pouco mais responsável e eu cega em meio a um tiroteio. Era como se eu é quem estivesse perdendo o controle, me transformando e não eles. Mas de todas as emoções presentes as que mais se ressaltavam eram a angústia e o medo de que algo de pior acontecesse com Yago.

Ele foi levado à força pelos médicos, imobilizado e internado em estado grave. Estava tendo uma overdose, surto psicótico e um ataque de pânico que o tornava mais agressivo do que geralmente um usuário de heroína costuma ser.

Eu assisti a tudo isso silenciosamente sem poder fazer nada. Também estava em pânico, também me sentia agressiva, mas eu realmente não era capaz de mover sequer um músculo meu. Dentro do meu corpo havia um demônio sussurrando palavras cruéis, revelando verdades secretas enquanto me devorava e arrancava cada parte boa de mim. Eu não era mais cem porcento eu, apenas setenta, os outros trinta eu tinha perdido há alguns minutos atrás. E no fundo eu sabia que se Yago não saísse bem daquele hospital eu também não sairia.

A vida fez de mim uma obra prima que poucos sabem interpretar. Uma arte grotesca, com cicatrizes, sorrisos, ódio e mágoa que marcam cada segundo em que estive acordada. Eu não quis ser arte, mas isso já estava prescrito para mim. Não era feliz, não era triste, era real e verdadeiro. Talvez isso signifique autenticidade ou simplesmente mais uma escultura banal, entretanto, sei que ao olharem para mim hoje cada um irá me interpretar de uma forma particular. É isso o que a arte propõe as pessoas: asas para elaborar uma mentira perfeita no paraíso sem nunca, é claro, conseguir escapar daquela verdade distorcida em meio à lama e podridão.

Seguir o olhar na direção das lâmpadas fluorescentes no teto branco. O cheiro de remédio era enjoativo, o som dos sapatos de salto ecoando pelos corredores assustador e o silêncio complexo demais. Respirei fundo e parei de encarar a luz. Minhas mãos tremiam.

_Ei! - Pierre chegou se sentando ao meu lado voltado a mim. - Você precisa se acalmar.

Eu olhei para ele e pela primeira vez pude enxergar seus olhos castanhos tão expressivos. Via refletir ali nos espelhos da sua alma uma dor tão profunda que ardia no peito só de imaginar. Ele tinha o cabelo cacheado mais comprido que o normal, um tufo de cachos caindo sobre a testa e a barba de uma semana por fazer. Maxilar travado, olhar cansado e os lábios ressecados como os quem está na fila para ter uma overdose também.

Drogado da porra! Eu não sabia o que ele usava, talvez cocaína ou heroína, mas sabia que não era nada leve. Pierre estava muito mais magro de forma que os ossos da bochecha e do maxilar ficassem marcando a camada fina de pele que os revertia. Eu não conseguia entender como que em apenas dois dias ele conseguiu emagrecer no mínimo três quilos.

_Estou calma. - eu disse o encarando perdida.

_Hazel, você fumou duas carteiras de cigarro em menos de três horas. - Pierre disse como se eu ainda não soubesse.

Apertei o isqueiro e o maço praticamente vazio em minhas mãos, então suspirei.

_Eu não aguento mais essa espera. E você sabe o que eu tenho a dizer, não sabe? - ele revirou os olhos em resposta. - Acho bom ligar para seus pais, Pierre. Talvez eles possam ajudar de alguma forma o Yago.

_Hazel, os únicos que podem ajudar o meu amigo agora são os médicos. Chamar a Carmen e o Victor só iria tumultuar mais essa situação. Por favor, já estou emocionalmente irritado demais para ter que aturar aquele casal infeliz. Eu odeio eles. - Pierre respondeu vagarosamente.

Eu fiquei alguns instantes em choque. Pierre sentia desprezo por sua família e aquilo era no mínimo revoltante para quem estivesse o ouvindo falar.

_Como pode odiar tanto os seus pais?

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