p l a t ô n i c o

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Pierre Montgomery

Recebi sua carta dois dias após o nosso primeiro encontro. Estava no chão bem perto da porta do meu dormitório da faculdade um rolinho de papal amarrado com uma fita azul.

Ela amava azul.

Eu sabia que era um recado dela, um "olá, estou com saudades" ou um "adeus, eu odeio você". Bom ou ruim eu sabia que era um recado dela.

Peguei o rolinho de papel e então caminhei até o outro polo do apartamento, a janela. Me apoiei no batente, admirei silenciosamente as nuvens de algodão no céu e travei o maxilar.

Hazel havia estado ali, mas nem ao menos me chamou para conversar, pelo contrário, optou por deixar um recado e fugir como se eu fosse um monstro que estivesse prestes a ataca-la. Era doloroso saber que a mulher que eu mais queria bem sentia pavor de mim. Isso era doloroso, mas não tanto quanto o fato de eu saber que ela estava certa. Enquanto ela se mantivesse longe ela estaria segura.

Olhei para o horizonte por trás das árvores verdes no campus. Procurei por ela em algum lugar no meio aos alunos, mas não a encontrei.
Naquele instante me senti realmente vazio. Estava arruinado sem ela, a melhor parte de mim.

Sabia que ela estaria feliz distante, entretanto aceitar sua partida era desesperador porque sem ela meu mundo não tinha cor. Era como se sem ela não houvesse vida dentro de mim. Mas eu não poderia ser simplesmente tão egoísta a ponto de ir atrás dela sem nem ao menos ler aquela maldita carta.

Eu estava chapado, mas tinha consciência  de tudo o que acontecia. Havia uma garota nua na minha cama dentro do meu quarto cujo o nome eu não me recordava. Em minha volta garrafas de bebida e bitucas de cigarros espalhados pelo chão. Eu estava cercado pelo caos, mas ter aquela carta entre meus dedos me trazia uma momentânea paz que eu não conseguia compreender. Talvez viesse dela, a Hazel, e não de suas perturbadoras palavras... Eu não sabia ao certo.

Tomei coragem com o sol batendo em meu rosto e a brisa leve iniciando um novo dia. Soltei o laço azul que envolvia o rolinho de papel, enrolei a fita no dedo indicador e respirei com certa dificuldade quando detectei que a letra era mesmo dela.

Eu tinha um mau pressentimento.

Meus olhos aos poucos foram devorando as suas letras doces que formavam cruéis palavras. Meus sentimentos explodiram para fora de mim e naquele momento eu soube: era o fim. O nosso fim.

A cada linha uma lágrima escorria de dentro para fora de mim. A dor cada vez mais arrebatadora em meu peito me fazia querer ceifar definitivamente a minha vida, pois não via nada pior do que o inferno que eu possuía em minhas mãos.

Eu lembro exatamente de cada palavra daquela carta, cada ponto, cada parágrafo. Eu lembro do desprezo, da raiva e da dor que ela sentia por mim. Isso acabou comigo.

Na carta Hazel dizia assim:

"Era verão,

Mas eu ainda me lembro de como tudo começou a desmoronar. O céu já não tinha o mesmo tom de azul uma vez que meu mundo fez-se cinza.

Cinza.

Eu odiava cinza.

Porém, fora nisso que eu acabara de me transformar uma vez que você e o fogo arrebatador do seu amor se arrastou por minha vida em meio a um temporal de ilusão queimando as boas e prósperas lembranças do coração de uma mulher.

Eu sequer vi quando tudo isso aconteceu. Não tive oportunidade de perceber que você estava me sufocando e me matando lentamente com o seu amor possessivo e mal.

Você era maldade, Pierre.

Seu olhar era tão mortal quanto uma picada de cobra e seus lábios tão doces quanto o mel de abelha.

Mas os pecados da sua carne condenavam a sua alma. Nem o amor mais profundo e fiel de uma mulher salvaria a sua vida, porque você já estava destinado a morte.

Você era a própria morte, Pierre.

E tudo o que vivemos afinal, nunca passou de uma mentira.

Engano meu achar que você reconstruiria os meus pedaços quebrados quando você mesmo os partiu ao meio.

Você nos quebrou para sempre, amor.

E nem durante todos os dias da minha vida eu poderei esquecer que, seu amor doentio e sua ambição desenfreada por controle arruinaram o que de melhor havia em mim.

Achei que esse sentimento salvaria a todos nós.
Mas para você nunca houve "nós". Era apenas você e sua disputa mortal contra seus demônios. Eu queria te trazer paz e o que ganhei foi o inferno de uma louca paixão que me fez submissa a dor e ao ardor que era carregar tal sentimento em meu peito.

Fui fraca, mas a ideia de te abandonar em uma sala vazia com todos os seus problemas doía bem mais do que estar ao seu lado e me submeter as piores noites de tormenta.

Talvez eu estivesse sendo manipulada.

Entretanto, sendo vítima ou não, sei que também tive grande influência para que chegássemos mais rápido ao fim.

Eu também era encrenca, você sabia bem disso. Você era viciado em problemas. Eu era só mais um a passar por sua vida.

Fizemos disso nossa doce ilusão.

O amor impetuoso que nos arrancaria dos trilhos e nos faria ultrapassar todos e quais quer limites impostos pela a sanidade.

Eu era fogo. Você era tóxico.

Uma combinação perfeita e mortal.

Nunca pensamos que isso não destruiria ninguém além de nós mesmo.

Talvez seja tarde para dizer, mas eu sinto muito, amor.

Gostaria de ter sido capaz de te salvar.

Mas o caminho que me leva até você fica a dois metros mais afundo da destruição.

Você foi o que mais marcou na minha vida. A memória mais lúcida e clara dos meus momentos de insanidade.

Ainda posso sentir seu amor batendo em meu peito e isso dói.

Dói amar você.

Dói sentir você em algum lugar vazio dentro de mim.

Mas agora eu te liberto.

Você está livre para voar, e mesmo que a vida lhe quebre as asas lembre-se que não há nada mais justo porque você, querido, me jogou para o alto sem se preocupar com a queda.

- Com amor, H.
Para: Pierre. "

Suas palavras eram cruéis e eu simplesmente não conseguia entender por que aquilo me assustava tanto. Eu achei que ficaríamos melhor longe, mas eu nunca precisei tanto dela quanto precisava naquele momento. Talvez porque ela fosse um desejo inconsequente que eu não pudesse realizar ou um amor platônico que eu jamais conseguiria alcançar, um pesadelo do qual eu não podia despertar.

Uma última lágrima escorreu dos meus olhos castanhos e foi neste instante que a fita azul escorregou de meus dedos e voou. Eu estiquei o braço para alcançar, mas era tarde. A fita fora carregada pelo ar e nunca mais voltou.

Pensei que a Hazel fosse a fita, e então me desesperei a ponto de gritar aos quatros cantos do mundo que eu a amava. Mas logo soube, quando a fita desapareceu finalmente e eu me alcamei, que talvez fosse melhor assim. Percebi que tanto eu quanto ela estávamos buscando a liberdade em vão. Eu queria me ver livre da minha culpa, dos meus erros e da minha vida. Hazel queria se ver livre de seus vícios, dos limites e de mim. E em meio a tantos sonhos impossíveis, o amor. A única coisa que nos libertava e nos aprisionava na mesma intensidade.

Fechei os olhos por alguns segundos e percebi que precisava responder a ela tudo o que me dissera. Suas palavras não poderiam passar em branco. Abri os olhos, olhei adiante e decidido eu me virei atrás de caneta e papel.

Se ela desejava realmente me libertar, antes teria de conhecer os demônios que faziam de mim um eterno prisioneiro.

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