Decolagem

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— Pronto!

Tinha acabado de escovar a franja de Nia. O resultado foi satisfatório. As malas já estavam arrumadas, a chuva parou,  e dentro de duas horas estaríamos a caminho de nosso novo lar.

Infelizmente Nia não conseguiu cooperar, o que significava que foi preciso fazer tudo por ela. Comprei um pacote de fraldas descartáveis, isso facilitaria enquanto estivéssemos no avião e no hotel. Para disfarçar o volume coloquei um vestido solto e cheio de pregas, que já era naturalmente volumoso.

Só conseguia pensar se ela sentiria vergonha de estar daquela maneira. Era uma mulher muito jovem, um pouco mais que eu, e sempre foi tão orgulhosa que talvez, em outras condições, falar do uso de fraldas a faria se sentir humilhada. E ali estava, usando fraldas.

Uma imensa vontade de chorar fechou minha garganta enquanto eu analisava seu rosto maquiado. Não era nada excelente como o que ela fazia, era o que eu conseguia e nem de longe destacava bem sua beleza como deveria destacar. Não importava, de fato.

— Agora é minha vez de me arrumar. — Pisquei com um olho e recostei seu corpo nos travesseiros de maneira que ela ficasse confortável.

Mal consegui segurar o choro até entrar no banheiro. Arranquei as roupas o mais rápido que pude e me enfiei debaixo do chuveiro ligado. A água corrente disfarçaria as lágrimas. Eu não queria que ela me ouvisse chorar. Não era justo. Se pudesse ver tudo, com certeza ficaria agitada e triste. Mais triste.

O peso da culpa que eu carregava era quase insuportável.

A maior parte do tempo eu fingia que tudo estava bem e que logo tudo seria melhor, mas uma voz, no fundo da minha mente, não me deixava esquecer o quanto fui inútil e descuidado. Eu não cuidei dela e da mãe como deveria ter cuidado e por isso minha sogra estava morta e minha esposa navegava em um estado semi consciente que eu não entendia.

Sentei no chão do banheiro e abracei meus joelhos enquanto a água caía sobre minha cabeça. Fechei os olhos com força e lembrei-me de Nia nas primeiras semanas de namoro. Forte, feliz e determinada. Foi um erro, aquilo só aumentou o peso da culpa e me fez chorar mais.

Então o mundo escureceu.

Flashes de luz apareceram. Um menino corria brandindo no ar um pedaço de madeira quebrada. Era eu, em algum momento da minha pré adolescência. Por vários segundos o rosto do menino era apenas um borrão. Então surgiu um filhotinho de gato, miando entre algumas árvores de um local desconhecido, o menino se aproximou do gato, vagarosamente, e acertou sua cabeça com o pedaço de madeira. O gato gritou de dor. O menino sorriu de uma maneira maldosa enquanto dizia “dead little cat” repetidas vezes.

Depois disso a escuridão voltou, e as palavras “lembre-se de mim” ecoaram em minha mente. Até que eu acordasse me afogando na água que tinha empoçado entre meus braços, joelhos e meu rosto. Não seria o suficiente para afogar nem uma minhoca, mas meu a abertura de meu nariz estava posicionada sobre a água de modo que ela entrava pelas vias respiratórias.

Assustado, soltei as pernas, desajeitado, e bati o dedo mindinho no canto da parede. A dor me fez voltar à plena consciência. Levantei-me e desliguei o chuveiro.

Eu estava enlouquecendo. Nunca em toda minha vida agredi um animal. E eu tinha absoluta certeza de que eu não tinha irmão gêmeo.

♠♠♠♠

Nico estava profundamente irritado e eu  apostava que, se tivesse mais alguém  conosco, que ele acertaria um soco no primeiro que o desafiasse. Felizmente, o pessoal do serviço de segurança não foi tão complicado quanto o da loja. Era uma empresa familiar de médio porte e relativamente conhecida.

Quando chegamos ao local, fomos atendidos por um dos filhos do proprietário. Um adolescente tatuado e muito malhado que parecia ser inteligente.

A Rosa do Assassino [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora