Encaminhado

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— Bom dia, meu amor. — Miguel me cumprimentou.

Completamente perdida, observei enquanto ele se levantava da cama para ir ao banheiro. Aquele era o homem que eu amava. Com quem eu gostaria de dividir toda a minha vida. A pessoa perfeita. E também era o homem que eu mais odiava, que me lançou nos piores momentos da minha vida, que matou minha mãe e a própria mãe.

Mas ele não tinha consciência de que seu outro lado existia. O que eu faria? Como lidar com toda aquela situação? E o nosso bebê, como seria?

Antes de tudo, era preciso sair daquele estado de torpor. Como eu faria aquilo se eu estava sendo drogada? Como controlar meu corpo?

E depois? Fugir do homem que eu amava ou tentar entrar em harmonia com um assassino sem escrúpulos?

Miguel voltou limpo e vestido com outras roupas. Seu cabelo, ainda úmido, brilhava sob os raios de luz. Abaixo dos olhos algumas olheiras despontavam, mas nem mesmo elas conseguiam desviar o aspecto gentil e amoroso de seu olhar. Senti um aperto no coração que aumentou absurdamente quando ele abriu um largo sorriso.

— Ainda chove muito lá fora. — Comentou enquanto olhava pela janela. — Acho que estamos ilhados.

Miguel riu da própria piada.
O que eu faria?

♠♠♠♠

Pegamos um carro para a segunda metade da viagem. Nico tamborilava os dedos no volante enquanto eu pensava em Nia. Ela amava o marido, seria difícil acreditar na verdade quando a contássemos. Certamente ela se veria em um terrível dilema: abandonar o marido ou defender ele?

Raios! O homem tinha assassinado a mãe dela. Como poderia ser conivente com o assassino da própria mãe? Que sentimento a faria defender um monstro?

Olhei pela janela do carro. O céu estava tomado por nuvens pesadas. O cinza escuro deixava o dia mal iluminado e era prenúncio de maus agouros. Inspirei profundamente. Eu sabia bem que sentimento era aquele que faria uma pessoa ficar cega diante de uma situação absurda.

Ela não conseguiria ser coerente em sua decisão, então precisaríamos forçar. Nia me odiaria depois disso, mas o que importava era a segurança dela, e que a justiça fosse aplicada. Não se tratava apenas dela, mas de muitas famílias. Tratava-se de Lia, Yamma, desconhecidos, Lianmar... E de Djéfani. Senti um aperto no coração quando me lembrei de minha salvadora. Fiz uma curta prece pedindo que ela estivesse onde deveria estar, em um paraíso tranquilo e cheio de amor.

— No que você está pensando? — Nico perguntou. Seu rosto não tinha o melhor dos aspectos e a respiração denunciava a impaciência.

— Em Djéfani. — Resumi. Não era nela que eu realmente estava pensando, era em Nia.

— Você ainda sente a perda dela. — Nico concluiu como se não fosse algo óbvio.

— Sinto. — Falei enquanto olhava para meus dedos que repousavam sobre meu colo.

— Sabe, não sei como Nia vai reagir. — Suspirou enquanto fazia uma curva fechada. — Talvez seja preciso usar a força.

— Maldito seja aquele escritor. — Amaldiçoei.

— Isac, eu não gosto de admitir, mas sou um homem ponderado, minha profissão exige isso. O Miguel é doente, ele não sabe ou não percebe que tem duas personalidades. Eu ainda não entendo como isso acontece, mas ele é inocente. Sinto-me horrível por dentro. Tudo está um caos. Eu preciso fazer a coisa certa e prender ele, mas é complicado pensar que um homem inocente vai acordar em uma prisão pelo resto da vida porque ele também é um homem culpado. Minha consciência vai me matar e me congratular todos os dias. — Nico balançou a cabeça como se estivesse negando algo.

Pensei um pouco sobre aquilo que ele falava. Quem tinha mais culpa afinal?

— O verdadeiro culpado se isentou de carregar a culpa. — Falei na esperança de ajudar Nico, mas eu realmente acreditava naquilo. — Schukrut é o verdadeiro culpado. Ele não era só um açougueiro macabro. Também foi o pior pai que alguém poderia ter. Foi ele quem transformou o filho em um assassino. Miguel não é um caso isolado no que diz respeito à doença, existem mais pessoas assim, mas elas recebem tratamentos adequados.

— Maldito Schukrut! — Nico apertou a boca em uma fina linha de descontentamento. Depois continuou a falar. — E pensar que eu admirei aquele homem. Que eu achei que ele iria ajudar você.

— Foi bom você me jogar naquele maldito lugar. A verdade veio à tona. Na verdade eu até acho que era tudo parte do seu plano. — Brinquei. Queria que Nico se sentisse melhor. Éramos amigos e é isso que amigos fazem.

— Claro, um plano ardiloso que nem eu mesmo sabia que tinha armado. — Ele riu.

Senti-me melhor quando por alguns instantes.

— Parece que você não é um incompetente, afinal. — Sorri para o retrovisor enquanto apoiava meu braço na janela aberta.

— Acho que vou ter um novo colega de trabalho. Você precisa mudar de profissão.

— Acho que não. — Murmurei enquanto observava Nico.

Sua testa franziu, mas ele não persistiu na idéia. Pelo menos não por hora.

Pensei naquela proposta. Será que eu deveria mudar de profissão?

♠♠♠♠

Por volta de meio dia a chuva ainda não tinha cessado. Miguel cuidava de Nia dedicando toda a sua atenção. Seu coração pulava de alegria a cada vez que olhava para a mulher que amava e que abençoadamente carregava um filho seu no ventre.

Ela parecia diferente naquela manhã, até mesmo para se alimentar estava com dificuldade. Ele presumiu que poderia ser algum sintoma da gravidez.

Enquanto isso Nia assistia tudo com o coração em pedaços. Um medo crescente do monstro que vivia dentro de seu marido e a culpa por odiar um homem inocente.

Mesmo que ela tentasse absurdamente, não era capaz de se mexer. Precisava pensar em uma maneira de sinalizar para Miguel, diferente de antes, de quando sua dor era entrega ao luto, agora era preciso lutar para se manter viva e no controle da situação.

Ocorreu-lhe que a maneira mais fácil de tirar a droga do corpo seria uriná-la, mas como pediria mais água?

Foi durante o almoço que teve uma idéia. Miguel  deu água e quando afastou o copo ela piscou um olho. Atento, ele percebeu que havia algo diferente. Colocou o copo na boca dela outra vez, quando afastou ela piscou mais uma vez.

— Então esse é o sinal para sede? — Miguel falou com os olhos brilhando de alegria.

Nia piscou um olho mais uma vez. E ele entendeu.

Ela tinha até a madrugada para fazer seu corpo reagir.

♠♠♠♠

Chegamos à cidade e procuramos o posto da Polícia Federal. Tudo organizado, ordens dadas, eu e Isac teríamos permissão para capturar Miguel. Vivo ou morto.

O único problema era a tempestade que caía sobre aquele lugar. A caminho do hotel passamos perto da orla. O mar estava revolto e nem o mais corajoso dos homens teria coragem de enfrentar aquelas ondas. Os celulares ficaram sem sinal, o que era péssimo.

Hospedamos-nos em um hotel. Tratei de interrogar sobre Nia e Miguel, alguns funcionários reconheceram a foto.

— Esse rapaz carrega a mulher pra cima e pra baixo. — Contou uma faxineira. — Ele gosta muito dela.

— Onde podemos alugar um barco? — Perguntei.

— Ixi moço, com essa chuva ninguém vai alugar um barco pro senhor. — Ela coçou a cabeça.

— E depois da chuva?
Ela explicou onde eu poderia alugar um barco. Era preciso chegar à ilha. Segundo a mulher não havia muitos moradores por lá, justamente pelo isolamento.
Encontrei Isac no restaurante do hotel, comendo uma montanha de alimentos que mal se equilibrava no prato. Era melhor assim.

A Rosa do Assassino [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora