Epifania

533 91 205
                                    

Como é viver com metade de suas escolhas sendo arrancadas de você? Como é estar possuído por uma parte sua que você desconhece? Como é trazer as mãos sujas de sangue inocente e culpado, e, ainda assim, não saber da culpa que se tem? Será que suportaria descobrir que você mesmo tentou matar a pessoa que ama? Aguentaria saber da dor que infringiu em alguém que é seu tudo? É possível aguentar o peso do assassinato da própria mãe?

Como seria se você acordasse de um sono conturbado e encontrasse aos gritos a pessoa que você tanto ama? Sua arma lentamente ceifando a vida que você mais quer proteger. E duas pessoas sérias em uma dupla contraditória, ambos apontando armas para você. Suas expressões austeras iluminadas pela lua.

O corpo de Nia tremia. A lâmina entrava facilmente na pele macia de seu pescoço. Seu tronco estava nu. Ele e ela. O casal que jurara se amar até que a morte os separasse, de costas para uma cachoeira desconhecida.

A voz de Nia era um berro na escuridão, um pedido de socorro, uma declaração de amor eterno: “EU TE AMO, MIGUEL! EU SEMPRE TE AMEI! EU AMAREI VOCÊ MESMO QUE EU MORRA! NINGUÉM, NEM MESMO JUAN VAI FAZER EU TE AMAR MENOS! EU TE AMO, MIGUEL! EU TE AMO!”.

Juan... Quem era Juan?

“Lembre-se de mim, irmão.”

Não! Miguel estava confuso, seus pensamentos, suas emoções, nada podia ser contido, nem mais complicado, e acima de tudo, nada apagaria de si que em uma noite, ele tentara matar a mulher que amava. Que carregava no ventre o filho que ele tanto queria.

Havia apenas uma solução...

— Eu também amo você. Sempre amarei. Pela eternidade. — Se despediu.

Ele a empurrou para frente. Não quis arriscar que ela se agarrasse a seu corpo e uma tragédia acontecesse.

Então se jogou de costas  na direção da água turbulenta.

Dizem que quando morremos a vida passa diante de seus olhos. Miguel nunca se decidiu se acreditava ou não naquela afirmação, até que se jogou em direção à morte.

O coração do homem se tornou sereno como as águas de um lago em um dia calmo, mas em sua cabeça, sentiu uma dor tão aguda que acreditou tê-la batido em uma pedra. Mas não era isso...

Não.

Depois da dor excruciante, Miguel teve acesso a suas primeiras memórias, todas elas. Foi quando se lembrou de Juan. De todas as suas maldades. O assassinato do padrasto, de seu verdadeiro pai. Miguel caiu na água e se debateu um pouco antes de se lembrar do resto. A adolescência, o estupro de Nia, o plano maquiavélico, o assassinato da própria mãe e o de sua sogra, os crimes de Juan... Lembrou-se de todos os crimes, cometidos por seu próprio corpo, maquinados em sua própria mente, por outro alguém. Por ele, seu irmão, Juan.
No peito de Miguel já não habitava um coração. Em seu lugar abriu-se um buraco negro que consumiu tudo o que existia à sua volta.

Ele não se debateu mais. Apenas se entregou à correnteza violenta que o levaria por um caminho repleto de rochas.

♠♠♠♠

— Você enlouqueceu, Isac! — Nico não relaxou a postura enquanto corria para a beira do barranco.

Lançou a luz da lanterna sobre as águas do lugar, mas não encontrou Miguel.

Eu não tinha certeza, nunca tive certeza de que ele viria. No entanto, arrisquei tudo que me era caro para tentar salvar Petúnia.

Aproximei-me dela. Seu rosto estava encostado no solo. As pequenas convulsões de seu corpo eram indício da potência do choro abafado.

Ajoelhei-me e toquei suas costas nuas com as pontas de meus dedos.

— Sinto muito. — Tentei me desculpar.

Sim, eu me sentia culpado por tê-lo julgado mal. Eu soube do bom caráter de Miguel apenas naquele último instante, quando ele a salvou do destino cruel que a aguardava.

— Eu juro que sinto muito. — Repeti. As lágrimas corriam grossas pela pele de meu rosto.

— Como você sabia? — Me perguntou. As palavras abafadas pelos soluços e pelo chão.

— Eu não sabia, foi uma aposta. — A voz ficou embargada em minha garganta.

Apostei no amor puro que ele sentia. E venci. Afinal ele era o príncipe perfeito, é claro que salvaria sua donzela em perigo. E por isso, cada célula de meu corpo era grata a Miguel.

Por outro lado, lá no fundo, debaixo de todo o remorso e do peso na consciência, uma parte de mim comemorava. Estávamos livres de Juan.

Juan era um assassino sanguinário e cruel, que até mesmo em sua morte deixou sua marca no mundo. Existe um ditado que diz: “Vão-se os anéis, ficam os dedos.”

No caso de Nia, ele levou a mão com todos os anéis.

Nico se aproximou e interrompeu meus pensamentos.

— Petúnia, preciso que se vire. Necessito olhar o ferimento em seu pescoço. — Ordenou.

Um pouco relutante, Nia se virou. Meu estômago se retorceu quando vi sua pele arranhada e machucada. Tirei a blusa de frio e joguei sobre ela para cobrir o corpo nu. Depois desviei o olhar para as pernas dela, alheio aos questionamentos de Nico.

Foi nesse momento que vi o sangramento.

— Nico, ela está sangrando. — Chamei a atenção do detetive.

Ele olhou para onde eu iluminava e seus olhos se arregalaram.

— Não! — Nia gritou e colocou a mão sobre o ventre.

— Você está menstruada? Está com cólica? — Questionou-a.

— Meu bebê! — Gritou entre o pranto que a tomava com toda a força. — Estou perdendo meu bebê!

Bebê...?

Bebê!?

Ela estava grávida.

Meu coração bateu forte no peito, enquanto eu assistia Nia cruzar as pernas e se deitar em posição fetal, como se aquilo pudesse segurá-lo dentro de si.

— NÃO! — Berrou mais uma vez. — NÃO ME ABANDONE, FILHO! — Implorou. — NÃO POSSO PERDÊ-LO TAMBÉM!

Naquele instante eu soube...

Que o inferno ainda não tinha acabado.

A Rosa do Assassino [Concluído]Onde histórias criam vida. Descubra agora