Capítulo Cinquenta e Oito- Estudo de um céu nublado

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Lisy



A sala da Dra. Evelyn tinha um tom acolhedor. Paredes em um tom pastel, estantes de madeira escura com livros de psicologia, filosofia e romances clássicos. Uma poltrona confortável, de couro envelhecido, ficava ao lado de uma mesa onde um pequeno difusor liberava um aroma leve de lavanda. O ambiente deveria me trazer paz, mas tudo dentro de mim era uma tempestade.


- Você parece tensa hoje - ela comentou, cruzando as pernas com calma.


- Estou. Essa semana eu... tive alguns pensamentos difíceis de lidar.


- Quer falar sobre eles?


Cruzei as mãos no colo e olhei para o grande quadro atrás dela, onde um céu cinza tomava conta da tela.


"O mesmo céu que pairava sobre o enterro de Thom", pensei enquanto meu coração se apertava.


- Estudo de um céu nublado, de John Constable.


Eu observei a luz espreitando por entre as nuvens, criando uma sensação de profundidade e movimento. De saudade do que se foi.


- É lindo.


- Sim, sim. Todo mundo que chega em meu consultório, se identifica com a obra. Todos chegam aqui, nublados.


- Eu compreendo. - sorri.


- Seus pensamentos, sobre o que eram?


- Eu magoei o William. Muito.


- Como? Você havia me dito que se sente culpada por ter entrado naquela briga. Por ter feito ele te machucar não intencionalmente. Que o fato dele se sentir culpado, era sua culpa. Há algo mais?


Ela esperou, como sempre fazia, me dando tempo para organizar meus pensamentos.


- Sei que já falamos sobre isso, mas... Eu estava pensando no quão cruel fui quando disse que, se o bebê fosse menina, se chamaria Angelini


A doutora Evelyn inclinou levemente a cabeça, me incentivando a continuar.


- Naquele momento, eu só queria que ele se sentisse parte daquilo. Achei que dar o nome da mãe dele à nossa filha seria uma forma de criar um vínculo entre nós, mas... agora vejo que eu só trouxe mais dor.


- Você acredita que isso tenha sido o gatilho para que ele se envolvesse na escuridão do seu passado?


- Como eu disse, não tenho notícias sobre ele, mas creio que isso deve ter permeado em sua cabeça.


- Você reconhece o impacto de suas palavras, Lisy. Isso é muito importante. Mas também é preciso olhar para o que levou você a agir dessa forma. Você sente uma carência afetiva muito grande, e isso pode ter influenciado suas decisões.


- Eu sei que me apego demais.


- Você trabalhará isso, mas as coisas são devagar. Trabalhe uma coisa de cada vez.


- Tudo bem.


- E o que sente quando se coloca no lugar dele?


- É insuportável. Ele perdeu a mãe quando ainda era criança. Ele viu a mãe morta e eu joguei esse nome como se fosse uma homenagem, mas... para ele, talvez tenha sido um lembrete cruel do que aconteceu com ela.


- Você também perdeu seus pais, seu irmão.


- Sim, e eu sempre soube que era amada. Mas o Will... me dói o coração. E quanto mais eu penso nisso, mais me odeio por ter sido tão imatura.


Respirei fundo, sentindo um peso no peito.


- É como se, naquele momento, eu tivesse dito: "Eu ia dar o nome da sua mãe, que morreu de forma trágica, a uma criança que nunca teve a chance de nascer... porque você me acertou sem querer, eu acabei sendo atropelada e perdi o bebê". Consegue entender como isso é terrível? Ele já carrega tanta culpa... Se culpa porque desmaiou naquele dia e, ao acordar, descobriu que a mãe pensou que ele tinha morrido. E por causa disso, ela tirou a própria vida. Se culpa por eu ter perdido o bebê.


Engoli em seco antes de continuar.


- O pai dele uma vez disse que ele causava dor às pessoas. E o que foi que eu fiz? O obriguei a lembrar de cada detalhe dessa culpa que ele já carregava... mesmo sem merecer.


A Dra. Evelyn assentiu levemente.


- Você entende que, naquele momento, não tinha consciência do peso que isso teria para ele?


- Sim... mas isso não diminui a culpa que sinto. Tudo teria sido mais simples se eu tivesse contado que não estava tomando pílulas.


Abaixei a cabeça.


- Eu tinha medo... Mas agora percebo que não dividir isso com ele, foi egoísmo.


A Dra. Evelyn respirou fundo, observando-me atentamente.


- Você sente que isso também contribuiu para o que aconteceu?


- Sim. Ele se sentiu traído, enganado. E eu entendo. Ele sempre teve medo de se tornar pai. Carrega dentro dele uma culpa que nem é sua... e eu não fui sensível a isso.


- Como se sente agora, depois de tudo? Depois de refletir sobre isso?


Suspirei.


- Sinto que estou tentando seguir em frente, mas tem dias que é impossível. A solidão... a falta dele... Ao mesmo tempo, tenho uma mágoa por ele ter escolhido a sua dor, ao invés do que sentíamos.


- Você acredita que nunca deixará de amá-lo?


Fiquei em silêncio, encarando minhas próprias mãos.


- Eu não sei.


A Dra. Evelyn se inclinou um pouco para frente.


- Heloyse, você pode sentir falta dele. Pode sentir culpa, pode se arrepender, pode querer ter feito tudo diferente. Mas isso não significa que precisa viver presa a esse sofrimento.


Meus olhos começaram a marejar.


- E se ele nunca me procurar?


- Então você precisará aprender a viver sem ele.


Fechei os olhos por um instante, deixando as lágrimas caírem.


- Você já chorou tanto, Heloyse. Mas nenhum choro dura para sempre, nem mesmo uma noite inteira. E nenhuma solidão é para sempre, a menos que você escolha segurá-la.


Eu olhei para minhas mãos, os olhos ficando pesados.


- Você não precisa de um final para seguir em frente. Só precisa aceitar que a vida continua, mesmo quando não temos todas as respostas.


Olhei para ela, enquanto minha mão ia em direção à caixa de lenços.






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