Escrevendo#36 - Os nós ocultos da trama

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Os escritores, por vezes, introduzem no texto informações que à primeira vista parecem cumprir uma função passageira ou meramente decorativa, porém, mais à frente, reaparecem para desempenhar um papel talvez fundamental para o relato: é o que chamamos nós ocultos da trama.

Recorrendo a outra metáfora, podemos dizer que atuam como sementes de informações posteriores, sementes que o autor planta sem que o leitor o perceba com frequência. Os nós ocultos da trama são praticamente obrigatórios nos romances de detetives, em cujo final os leitores lembram dados e informações que, no início do relato, pareciam banais e que, no desfecho da história, revelam-se pistas preciosas para, por exemplo, descobrir quem era o assassino. Mas esse recurso não é necessário apenas nesse gênero.

Voltemos ao filme Titanic para ver um exemplo que muitos conservam na memória

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Voltemos ao filme Titanic para ver um exemplo que muitos conservam na memória. Quando Billy Zane e seu secretário voltam ao camarote em busca do dinheiro com que pretendem subornar um dos oficiais responsáveis pelos botes salva-vidas, Zane retira do cofre o diamante e o coloca no bolso do casaco, um pormenor que a maioria dos espectadores esquece imediatamente. Por isso, cenas mais tarde, quando Zane coloca o casaco sobre os ombros da atriz Kate Winslet, o gesto parece não ter grande importância. Um pouco mais adiante, o próprio Zane percebe o erro que cometeu, e é nesta hora que o espectador se lembra das cenas anteriores e passa a valorizar o fato. No roteiro de Titanic há vários nós ocultos. Alguns deles poderão ter passado despercebidos para o espectador menos atento. É o caso, por exemplo, do carro no qual os protagonistas fazem amor, e que já tinha aparecido no início do filme, na cena em que os passageiros estão embarcando no transatlântico.
     
         
Utilizando o recurso dos nós ocultos, o escritor pode encadear cenas e tecer tramas e subtramas.

   
Vejamos agora num texto literário um nó da trama bem escondido pelo autor. O trecho a seguir pertence ao romance A tempestade, de Juan Manuel de Prada.

    Exemplo:
     
Sua boca cheirava a bala de eucalipto, e seu cabelo descaía em uma melena cafoníssima e levemente ondulada, como de soldado assírio. Sua orelha também era cafoníssima, segundo tive oportunidade de comprovar quando lhe sapequei uma dentada [...]. Eu o mordi com uma voracidade canibal e escutei seu grito de animal preso na armadilha [...], seus alaridos eram mais clamorosos que os alarmes do museu e só cessaram quando, apartando-se de mim, ele se resignou à amputação do lóbulo. De um salto, trepou na claraboia e subiu a pulso até o telhado [...]. Caído no chão, eu respirei o ar furtivo que entrava pela claraboia e cuspi o frangalho sanguinolento que tinha ficado preso entre meus dentes. Ao me levantar, quase investi contra A tempestade; cheguei a roçá-la com os dedos (mas sem lhe infligir um único arranhão) e aspirei o cheiro de óleo que, apesar dos seus quase cinco séculos de antiguidade, se conservava fresco, quase anormalmente fresco. O alarme parou de tocar.

         
Aproveitando que o leitor está entretido com os movimentos de uma briga, o autor deixa cair uma pista que antecipa uma das chaves do romance. Quando, mais adiante, o leitor perceber que o óleo a que se fazia referência nesta cena pertence a uma falsificação do quadro, resgatará da sua memória a frase e aspirei o cheiro de óleo que, apesar dos seus quase cinco séculos de antiguidade, se conservava fresco, quase anormalmente fresco.

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