Escrevendo#35 - Construção de cenas

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Uma cena compõe-se de três elementos: a moldura, a atmosfera e a ação. A menos que o autor pretenda, conscientemente, eliminar algum deles, deverá levá-los em conta toda vez que for construir uma cena.
A moldura é o conjunto de elementos fixos do cenário em que a ação se desenvolve: paredes, janelas e móveis numa cena doméstica; montanhas, campos, árvores e fontes de água numa cena campestre.
A atmosfera está constituída pelos elementos variáveis do cenário: luz, temperatura, sons, aromas, etc.
A ação é tudo aquilo que acontece no cenário, qualquer movimento, pensamento, diálogo, etc.

    1. Resumir ou construir cenas?

Na hora de escrever um relato, é importante estabelecer quais trechos da história aparecerão resumidos e quais deles serão encenados. A decisão deve corresponder à importância da informação que se deseja dar a cada trecho. Seja como for, um texto no qual tudo está resumido possui menos vivacidade, limitando as chances de fazer o leitor entrar mais profundamente na narrativa. No polo oposto, uma narrativa feita integralmente de cenas tende a ser, além de muito extensa, monótona e sem atrativos.

 No polo oposto, uma narrativa feita integralmente de cenas tende a ser, além de muito extensa, monótona e sem atrativos

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Suprimir uma das partes da cena – a moldura, a atmosfera ou a ação – é deixá-la incompleta. O leitor ficará sem elementos suficientes para reviver a cena em sua totalidade. Se a moldura não estiver descrita, o leitor se sentirá deslocado. Se não for criada a atmosfera, a cena ficará inconsistente. E se não houver nenhuma ação, o texto se restringirá a ser uma mera descrição, e não uma cena.

1º exemplo:  
         
Os dois brigaram até desmaiarem. O olho direito de Mário sangrava, e ele quase não conseguia abri-lo. Tentou se levantar, mas uma dor aguda no estômago fez com que caísse de novo. Muito lentamente abriu o olho esquerdo e conseguiu ver que um raio de luz iluminava Paulo, imóvel, deitado sobre uma poça de sangue.

         
O leitor não sabe onde os personagens se encontram. Pode ser que estejam num terreno baldio, ou dentro de uma garagem, ou num armazém abandonado, ou numa fazenda longe da cidade (o autor do relato não se deu ao trabalho de esclarecer esse aspecto em nenhum momento). A cena, portanto, parece ocorrer num espaço etéreo. Para evitar um surto de agorafobia, o leitor tende a imaginar uma moldura por sua própria conta, mas neste caso se vê obrigado a fazê-lo a partir do nada.

Se houvesse a descrição de uma moldura, a atmosfera da cena (um raio de luz iluminava Paulo, imóvel, deitado sobre uma poça de sangue. Cheiro de urina e suor.) estaria reforçada. Conhecendo o espaço no qual a ação se desenvolve, o leitor teria condições de situar aquele raio de luz, fazendo uma ideia melhor da iluminação do lugar. Se soubesse que os personagens estão num lugar pequeno e fechado, o odor de urina e suor seria mais penetrante. Os cheiros próprios de um local específico poderiam inclusive misturar-se a esse odor de urina e suor, sem que fosse preciso nomeá-los. O próprio leitor poderia imaginá-los, se o autor tivesse descrito, por exemplo, que o local da briga tinha sido um celeiro, ou uma estação de trem, ou os fundos de um armazém.

    2º exemplo:

   
   
Ela estava sentada num banco do jardim, de costas para mim, sozinha, tranquila. A luz da tarde ia se apagando. Aquele lugar emanava tristeza, a tristeza dos que se sentem abandonados por seus entes queridos, e passam a viver num lugar estranho, em companhia de outras pessoas, tendo em comum com essas pessoas apenas a loucura. Aproximei-me dela, caminhando lentamente, como se alguém me segurasse por trás, puxando meu paletó.

         
     
Se o autor descrevesse a moldura (neste caso, o jardim), situando melhor o leitor naquele cenário, conseguiria mostrar o que precisou nos dizer explicitamente: que Aquele lugar emanava tristeza. Ao contrário, a sensação de abandono, decadência, solidão ou tristeza poderia ter sido perfeitamente identificada numa descrição mais completa do lugar em que estão os personagens.

Para evitar um surto de agorafobia, o leitor tende a imaginar uma moldura por sua própria conta, mas neste caso se vê obrigado a fazê-lo a partir do nada. (se em cenas anteriores, por exemplo, o cenário em que vai acontecer a ação já foi descrito, torna-se desnecessário insistir na definição da moldura, e talvez seja preferível sequer mencioná-la de novo.

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