Capítulo 32

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Os galhos da enorme árvore a frente da residência bateram contra as vidraças da janela lateral. O som seco e característico tornava a situação sinistra, quase assustadora. Audrey Morgan acreditava que nada pudesse assustá-la desde que a mãe faleceu; mas, ao ouvir o barulho, ela tapou a cabeça com o edredom, claramente perturbada.

Em seus exatos nove anos de vida, não costumava fugir de nada. Ora, não fora ela que encontrou e guardou o corpo da mãe, sozinha, enquanto a polícia não chegava? Não fora ela que ficou encarando aqueles olhos mortos enquanto esperava que algum adulto aparecesse e a livrasse da incumbência?

Entretanto, naquela noite, sentiu frio em todo o corpo. Pousou a mão sobre o peito tentando se acalmar. Se conseguisse falar (bem sabia que após a morte da mãe, as palavras não saíam de sua boca), iria rezar em voz alta. Quem sabe Deus (se é que existisse!) a ouvisse.

Quinze minutos, e o pavor não passara. Desistindo de dormir, puxou as cobertas e se levantou. O quarto ainda estava iluminado por um resto de vela. O padrasto não costumava permitir que ela utilizasse luz elétrica. "Gasto desnecessário", dizia ele.

Andou de um lado para o outro buscando algo que a ocupasse. Pegou uma boneca velha que estava atirada no chão, sentou-se na cama e tentou brincar.

Foi então que ouviu um choro. No começo parecia um lamurio suave, mas logo percebeu que era um pranto. O pranto do irmão.

"Steven..." – pensou.

Quando a mãe morreu, deixou-a com a responsabilidade de cuidar do menor. Não que fosse alguma novidade, pois em vida a mulher nunca se importou com as crianças. Quando se casou com aquele homem gordo, passou a desconsiderar os dois filhos ainda mais. Era Audrey que alimentava, dava banho e brincava com o garotinho de olhos assustados.

Da mesma forma, era a menina que escondia o mais novo dentro do armário quando a mãe e o padrasto se drogavam. Ela conhecia a rotina das drogas. Os adultos ficavam extremamente ativos tão logo abusassem dos tóxicos. Batiam nela, e então ficavam a procura do outro. Como o efeito da droga durava pouco, logo desistiam da busca e iam dormir.

Foi, portanto, um alívio quando a mãe morreu.

O padrasto passava boa parte do dia fora, e ela conseguia ter alguma paz. Quando ele voltava no final da noite, tanto Audrey quanto Steven já estavam dormindo. O homem então os ignorava sumariamente.

"Steven..." a mente repetia o nome seguidamente, enquanto a mão abria a porta do quarto.

Fora do quarto, o som dos soluços do menino era mais alto. A garota de nove anos caminhou em passos temerosos pelo corredor escuro. A casa era pequena, e logo ela estava na cozinha.

Olhou a mesa. Um pedaço da torta já velha, que a vizinha iria jogar fora – mas que acabara dando a menina pobre – estava sobre um prato. Sem geladeira, Audrey tentou manter a guloseima fria apenas a tapando com um guardanapo. O bolo estava sendo guardado para o aniversário de Steven que fazia seis anos naquele dia. Tão logo o irmão acordasse, iria levar-lhe o doce e cantar-lhe parabéns.

Ouviu um pequeno grito sufocado do irmão. Seria um pesadelo? Rapidamente pegou o prato com o bolo e começou a ir em direção ao quarto do menor. Iria dar-lhe o bolo ainda de madrugada, não somente para acalmá-lo, mas também para aproveitar o doce sem que o padrasto o roubasse dela.

Porém, estancou ao se aproximar da porta que estava aberta.

Lá dentro, o homem gordo com quem a mãe havia se casado antes de morrer estava em cima do irmão. Ele tapava a boca de Steven para que a criança não gritasse; porém, o sangue nos lençóis deixava claro o quanto o estava machucando.

Rendição (Jikook)Onde histórias criam vida. Descubra agora