Capítulo 34

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De todas as suas lembranças mais intensas, a recordação que jamais saiu de sua mente era o cheio acre, azedo, que sua casa antiga tinha. Audrey recordava bem daquilo, ainda podia sentir aquele odor velho como se o mesmo estivesse impregnado no seu nariz. E talvez morresse com aquela sensação desagradável, sabendo que a mesma a acompanharia até o inferno.

A segunda coisa que mantinha na mente eram os olhos assustados de Steven. Para sempre, a visão daqueles pequenos olhos esverdeados, observando-a de dentro dos armários nos quais o escondia da mãe, dominaria seu coração.

Dizem que o tempo apaga certos pensamentos e certos rostos. Estranhamente, ela não conseguia se lembrar direito do rosto da mãe. A mulher era apenas uma nuvem nublada, um amontoado de cabelos tingidos de amarelo e pele pálida. Mas, Steven não... Steven tinha nariz, olhos, boca, sardas... Steven era completo na sua mente, era completo no seu coração.

Quantos anos havia se passado desde que vira sua figura frágil pela última vez? Quantos anos havia se passado desde que um policial gordo entrara na casa pobre e blasfemara baixinho assim que viu o corpo pendurado? Quantos anos desde que ela observara enfermeiros retirando o menino morto e o colocando em uma ambulância que se fechara para sempre na sua mente?

Audrey se lembrava de ser segura pela mão por uma mulher de aparência bondosa. Naquele instante, imaginou se as coisas iriam correr diferentes para ela, mas muito se enganou, porque poucas semanas depois era jogada dentro de um orfanato frio e escuro, como se não fosse nada.

Bom, era nada. Nunca foi algo.

A ideia se formou muito antes de Steven morrer. Na verdade a ideia já era formada antes mesmo da mãe deixar o mundo dos vivos. Tudo que existia nela era um sentimento de amor para Steven, mais nada. Lembrava-se de catar a comida na rua para ele, lembrava-se de roubar dinheiro do padrasto para comprar pão para o irmão. Ainda podia ver a si mesma enfiando o menino no armário e aguardar em pé, no meio da cozinha, a mãe abrir a porta e a espancar.

O som da própria voz pedindo para Steven não chorar nem gritar ainda ecoava nos seus ouvidos.

"Não quero que ela te escute", dizia.

Porque, na mente da menina que outrora fora, não importava se seu corpo era machucado pelas surras ou agressões verbais... A única coisa que interessava era o irmão, era cuidar do irmão.

Audrey abriu os olhos. Uma lágrima solitária desceu pela face.

Sabia que devia ter partido com ele. Sempre soube. Devia ter colocado a corda no próprio pescoço depois do grito seco do garotinho ter escapado dos lábios infantis. Mas, sua covardia e seu apego a algo que ela nem sabia o que era a impediu de seguir o irmão.

Viveu para se arrepender.

Cada minuto daqueles quase trinta anos foi de arrependimento. Agora, o corpo preso em uma cama que fedia tanto quanto a casa que viveu, as cordas cortando seus pulsos, e a dor insuportável na sua cabeça machucada faziam com que a culpa, que sempre andou a passos vagarosos ao seu lado, tornava o remorso a dor mais insuportável que um ser humano normal poderia aguentar.

Havia acordado poucas horas depois de ser capturada. E isso já tinha três dias inteiros e uma noite. Desde o fato, não havia comido nem bebido nada. A comida não fazia tanta falta, mas a sede queimava sua garganta. Como tinha bebido álcool no casamento, o corpo clamava por água. A desidratação estava destruindo sua mentalidade, sua força, tudo que nela existia.

A vista escureceu novamente, e ela fechou os olhos. Sentia que iria morrer ali, e quase gargalhou perante a constatação. Não que a vida fosse de grande importância para a mulher, mas lhe doía demasiadamente saber que a última coisa que ouvira antes de ser pega foi que Namjoon não mais a considerava uma amiga.

Rendição (Jikook)Onde histórias criam vida. Descubra agora