5.3 - Bicicleta de rodinhas

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A boca da Karen mexe, mas eu não consigo ouvir nem um som que não seja do programa de culinária que passa na TV ensinando como preparar o frango perfeito, desde que chegamos aqui. A última palavra que eu escutei dela foi depois de segundos na cozinha conversando com a Makena, quando ela tomou coragem para se sentar na minha frente, olhar nos meus olhos e dizer: "eu estive pensando, Richard" — um péssimo jeito de começar, alias —. Por quê? Porque foi simplesmente surreal a conversa que as duas tiveram enquanto Karen servia limonada rosa pra outra, foi mais ou menos assim:

"— Eu não sei o que falar pra ele. — ela começou, sussurrando meio nervosa.

— Então pra que foi atrás dele?— Makena perguntou, sutilmente irritada, também aos sussurros.

O problema é que nem uma das duas sabe sussurrar.

— Eu sabia, mas depois daquele dia não sei mais.

— Ué, só falar o que você iria falar. — respondeu simples, sendo acompanhada pelo tilintar dos copos de vidro. — Mas não o faz sentir que ele veio aqui á toa.

— E se ele não gostar mais de mim?

— Você o abandonou quando ele tinha nove anos; se ele não gostar de você, é lucro. — retruca, disfarçando sua petulância. — Olha, eu não quero me meter, mas se acha que vai magoá-lo, só me avisa logo que eu invento alguma coisa pra sairmos daqui e depois o faço esquecer dessa história, tudo bem?— por baixo de seu atrevimento consigo captar sua preocupação, que me faz sorrir brevemente, mesmo com as circunstancias.

Passa um segundo de silencio, então Makena volta a se pronunciar.

— Ótimo, então dá seu jeito. — diz por fim, voltando com dois copos de limonada e um sorriso caloroso, como se nada estivesse acontecendo. Ela me entrega um copo, que eu deixo de lado, e volta a se sentar ao meu lado, deixa um leve beijo no meu braço antes de se esticar pra perto do meu ouvido e murmurar: — Eu não me incomodo de esperar lá fora."

Não respondi nada, só a olhei de volta e balancei a cabeça negativamente enquanto Karen voltava pro seu lugar. Infelizmente, algum tempo depois seu telefone tocou e ela foi atender lá fora, me deixando sozinho com minha progenitora. Felizmente, não sinto mais o nervosismo e ansiedade que estava sentindo antes daquela conversa, agora só sinto uma mistura de dó e desgosto pela mais velha; uma mistura que filho nenhum deveria sentir por nem um de seus pais.

Talvez algum dia eu volte a vê-la como um ser humano da minha família, mas graças a ela percebi que não é porque temos o mesmo sangue que vamos nos relacionar, e eu tô bem com isso. Foram anos, e ela nunca pensou em fazer uma visita, ou ao menos uma ligação. Agora eu não preciso mais dela, tenho outras duas ótimas mulheres na minha vida.

Essa sequencia de pensamentos me faz repensar tudo isso, e minha conclusão é que tudo isso é uma palhaçada. Eu também queria conversar, mas onde ela estava?

— Foda-se você. — digo apenas, e é o suficiente para fazê-la calar a boca.

— O que-

— Foi o que você ouviu. Eu não tô nem aí pra essa merda mais, Karen. Pensei que vindo aqui encontraria alguma coisa, mas só quero que tudo isso se foda. — dou de ombros, me levantando para ir embora. — Espero que aquele cara tenha filhos, porque seu único filho morreu. — finalizo, observando seus olhos azuis que herdei brilharem em lágrimas que me comovem lá no fundo, mas não o suficiente para me fazer repensar no que falei. Lhe dou as costas e saio fechando a porta.

Porra, deveria fazer uma música sobre isso.

Caminho pela estradinha de concreto rodeada de arbustos bem podados, inspirando profundamente para passar a sensação desconfortável que me consome por dentro deixando um rastro sufocante por minhas vias aéreas. Aceito ter feito a melhor decisão, ou pelo menos me convenço disso. Cada um tem sua escolha, e Karen fez a sua há vinte anos atrás.

𝒍𝒐𝒗𝒊𝒏𝒈 𝒊𝒔 𝒆𝒂𝒔𝒚 - 𝕄𝕒𝕔𝕙𝕚𝕟𝕖 𝔾𝕦𝕟 𝕂𝕖𝕝𝕝𝕪Onde histórias criam vida. Descubra agora