UM

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ATUALMENTE

Porto de Pedras, Sul do Brasil

Era fim de julho e o frio castigava da forma mais cruel possível a pequena cidade de Porto de Pedras. Os poucos mais de cinco mil habitantes se enroscavam dentro de seus casacos caros que carregavam a etiqueta de alguma grife estrangeira e lutavam bravamente para enxergar por entre a neblina espessa da manhã invernal.

Era o meio do ano letivo e o alvoroço estudantil não causava nenhum espanto, afinal quem quisesse chegar no horário precisava mesmo cortar caminho e se apressar, caso contrário ficariam de fora das aulas.

O problema era que Karol não sabia de nada disso, portanto tudo o que pôde fazer ao sair de casa e se deparar com as calçadas cheias e as pistas tumultuadas foi caminhar no melhor ritmo que conseguia, afinal dentro de sua cabeça não fazia o menor sentido que as pessoas se atropelassem daquela maneira.

Ela estava há exatos nove meses na terra. Suas asas não lhe pertenciam, mas o peso delas ainda estava incrustado em suas costas como se ao esticar os braços pudesse tocar em uma das penas; e em sua consciência ainda carregava dolorosamente as lembranças mais ardis do romance tórrido que teve, mas que se encerrou tão abruptamente levando consigo um pedaço dela.

Karol não se sentia humana, mas também não era mais um anjo. A menina estava na linha tênue mais severa que um ser imortal pode estar e tudo o que mais desejava era encontrar uma saída ou um refúgio; algo que a fizesse sentir viva.

Por isso, apesar de remoer noite após noite a proposta de Raziel, ela não pensou em desistir.

A garota queira se agarrar a algo e se esse algo fosse isso, pois bem, estava disposta a tentar.

Ela só não gostava da idéia de Raziel ter praticamente sumido. Ele só apareceu duas vezes nos últimos três meses, e uma dessas vezes foi para levá-la até o lugar onde Mabel moraria com a família.

E por mais que Karol não quisesse admitir, viu-se ligeiramente empolgada com a sensação de saber sobre o futuro de alguém.
Ela nunca havia acompanhado de perto uma história de amor de vidas passadas, apenas Cassiel e Zaniel - seus irmãos mais velhos - foram agraciados com isso.

Contudo, Karol titubeou um pouco enquanto espiava Mabel e a família levarem algumas caixas para dentro da casa nova.

─ Não ouse desistir agora, Karol! ─ Raziel murmurou nervoso, roendo a unha do dedão.

Ele sentia dentro de si a angustia da irmã, mas precisava que ela acreditasse nele, só assim as coisas poderiam ir para frente.

Um precisava do outro.

─ Eu não vou desistir. ─ A menina disse baixinho para que as pessoas que passavam pela calçada não a achassem maluca por estar falando sozinha. ─ Mas eu não fui criada para ser um anjo cupido. Não sou o Cassi ou o Zani. Eles, sim, são bons nisso.

─ Mas você não será um anjo cupido! Eu só preciso que...

─ Que eu fique infiltrada na escola e na vida dos dois. Já sei. Mas isso não diminui o meu medo de estragar tudo.

─ Eu sei que você nunca estragaria.

─ Isso é porque você sempre quer ver o lado bom das coisas, mas eu posso muito bem meter os pés pelas mãos e acabar arruinando uma bela história de amor! Ziel, eles são almas gêmeas! Isso quase nunca acontece. E se eu errar... Se algo acontecer... Seria um pecado tremendo.

O anjo sacudiu as asas com ansiedade. Ele queria tocar na irmã, chacoalhá-la para que voltasse ao juízo, mas não podia sequer triscar nela.

As coisas eram injustas.

A Marca dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora