DOIS

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Uma chuva fraquinha estava caindo quando Karol passou pelo porteiro da escola e alcançou à calçada, parando logo em seguida para sugar o máximo de ar que conseguia, permitindo que a vida fluísse através de suas artérias e deslizassem até os pulmões.

Após soltar todo o fôlego que havia prendido, a menina se escorou na parede.

Nunca em toda a sua existência mundana ela havia experimentado um misto tão absurdo de sensações.
Para começo de conversa, Hugo tinha lhe dito um milhão de vezes que por mais que ela pensasse algumas coisas, não deveria falar, pois viver na terra não era o equivalente a viver no céu. Às vezes a dissimulação é a melhor saída.

No entanto, naquele momento, Karol sentia que havia traído a si mesma.

No fundo de seu coração cogitava seriamente que houvesse estragado tudo. E nem havia sido por mal.
Mas com certeza não pegaria nada bem ter começado a história dizendo aquilo para o garoto a quem ela não deveria ser nada além de sua sombra.

Agora ele sabe que eu o acho lindo. E eu falei de um jeito... Ela repetia mentalmente, envergonhada.

─ Menina, você está bem? ─ Era o porteiro carrancudo que perguntava, após espiá-la pelas grades do portão de ferro e perceber que ela não havia saído do lugar mesmo que a chuva estivesse começando a engrossar. ─ Se quiser esperar estiar, pode ficar aqui dentro. Só não demora muito, porque senão vão brigar comigo.

Karol saiu de seu entorpecimento emocional aos poucos e secou o rosto úmido por causa das gotas da chuva, depois se virou para o homem esboçando um sorriso que rezou para parecer verdadeiro.

Ela não se importava com os chuviscos, naquele momento suas preocupações eram mais palpáveis e complicadas.

E, infelizmente, ia além do que disse ao Ruggero.

Ainda havia a questão do histórico.

─ Na verdade, senhor...?

─ Cupertino. Eu me chamo Cupertino, menina. Igualzinho ao meu pai e ao meu avô. Os dois eram da marinha, homens honrados. ─ Disse com o peito estufado abandonando relativamente a carranca de antes. ─ Cupertino Maciel dos Prazeres.

A menina assentiu com afinco e estendeu a mão para ele por entre as grades.

─ É um prazer, senhor Cupertino. E, bem, eu me chamo Karol.

─ Nome bonito. A minha prima lá do interior tem esse nome também.

─ Ah, legal. ─ Assentiu novamente com um sorriso amarelo nos lábios. ─ Mas enfim, eu queria saber se o senhor pode me fazer um favor. É rapidinho, eu juro.

Apesar de intrigado, o homem abriu o ferrolho do portão e o arrastou para o lado, deixando a mocinha entrar.

Já com um teto sobre a cabeça e bem longe da chuva, Karol pôde desacelerar um pouco.

─ Diga, menina. No que eu posso ajudar?

─ Na verdade, eu só queria saber se o senhor pode me emprestar aquele aparelho de fazer contato com as outras pessoas. É coisa rápida. Eu só preciso falar com um amigo, mas não vou demorar.

─ Você quer dizer celular? ─ Ele pronunciou devagar seguido de um arqueio de sobrancelha.

Karol balançou a cabeça pra cima e pra baixo.

Esses detalhes de nomes ainda lhe deixavam um pouco confusa, mas estava determinada a aprender o máximo que pudesse no tempo que ainda lhe restava na terra.

─ Exatamente! Será que o senhor tem um desses?

Cupertino deu um passo discreto para trás e procurou algum rastro de zombaria no rosto dela, porém não encontrou.
Ele estava ligeiramente acostumado com as peças que os alunos gostavam de pregar nele vez ou outra, mas realmente não lhe parecia que aquela menina estava tentando fazer isso.

A Marca dos AnjosOnde histórias criam vida. Descubra agora