CAPÍTULO 28

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An Lepard olhava para as estrelas um tanto deprimido. Os ares mau cheirosos da enorme marina de Tchilla eram amenizados por uma generosa brisa noturna vinda do mar. Noutro canto de seu navio que fora roubado e depois recuperado às custas de muito sangue, estavam sua ex-amante, Claudine, e Kyle Blackwing, vivenciando um romance o qual capitão custava admitir que feria seus sentimentos. Sua vingança foi realizada: Erles e Celix foram mortos e seu navio recuperado. Recuperar seu navio e vingar-se dos traidores foi a motivação que levou o capitão An Lepard adiante, mas agora o que fazer? As memórias das torturas do silfo Shark ainda o atormentavam, pensar em Kyle com Claudine o atormentava, pensar em seu aleijão e tudo mais também. Tudo por causa do maldito Celix. Ele já estava morto, mas um vazio e uma raiva que não se dissipavam permanecia.

- Bela noite, não é capitão? - indagou Archibald.

- Depende dos olhos de quem vê.

O ex-monge aproximou-se colocando-se lado a lado com o capitão, assumindo postura semelhante, apoiando mãos na lateral do navio e olhando para o alto. - Ambos insones, não é mesmo?

Lepard deu com os ombros. - O que quer DeReifos?

- Sei que não se importa muito com Lacoresh, ou com a questão dos necromantes.

- Verdade. Então?

- Fico pensando se lhe restou algum objetivo de vida.

Lepard riu-se, uma risada ácida - Não estou precisando de um conselheiro sentimental, certo padreco?

- Não é o que pretendia, sabe... - foi interrompido.

- Sei, sei exatamente do que estou precisando. Uma boa noitada! O que me diz, Sr. monge?

- Noitada?

Lepard envolveu as costas de Archibald com o braço e puxou-o sorrindo. - Vamos, acho que ambos precisamos tomar uma boa bebida.

Archibald concordou - considerando tudo o que passamos, uma bebida não parece uma má ideia.

Próximo à marina na qual o Estrela do Crepúsculo estava ancorado, dezenas de bares e tavernas estavam em pleno movimento. No interior de uma destas, soava uma música exótica, muito ritmada, composta por uma dúzia de instrumentos de percussão e um conjunto de flautas com timbres diferenciados e ao mesmo tempo peculiares. A música era bastante estranha para os ouvidos de um lacorês. An Lepard não escolheu uma espelunca qualquer, era um lugar frequentado por ricos ou poderosos, cuja entrada lhes custou caro.

Archibald protestou - isso tudo?

- Relaxa DeReifos, vai valer o preço.

Ao cruzar dois portões intermediários e descer uma pequena escada, depararam-se com um ambiente amplo, luxuosamente decorado, coberto por uma névoa advinda de dezenas de instrumentos de fumo espalhados. O primeiro ambiente, era composto de mesas baixas, rodeadas por almofadões nas quais apenas homens bebiam, comiam e fumavam. Adiante, havia uma escada de poucos degraus ascendentes que levava a outro local, separado por inúmeros véus coloridos. De lá vinha a música, assim como grande movimentação e dança. Próximo à escada, uma espécie de cabide de grandes proporções apoiava dezenas de vestes azuis ou púrpuras.

Archibald e An Lepard sentaram-se ao redor de uma mesa sobre a qual um instrumento de fumo estava disponível. Lepard tragou e saboreou, em seguida, ofereceu a Archibald. O rapaz, tossiu vigorosamente, pois nunca havia fumado qualquer coisa em toda sua vida. Lepard zombou de Archibald e pediu algumas bebidas. Uma bonita jarra de vidro, contendo um líquido amarelo foi servida. Tratava-se de uma batida de frutas, bastante adocicada, misturada a uma forte aguardente local. A bebida doce, escondia o gosto do álcool e sem perceber o ex-monge se viu embriagado.

- Vamos rapaz - chamou Lepard.

- Onde?

- Para a noitada de verdade, até então, estávamos só nos aquecendo.

Archibald seguiu Lepard para a escada diante dos véus. Lepard sorria largamente e Archibald estava apreensivo. A música estava mais intensa e além dos véus, Archibald ficou atordoado pela visão. Uma centena de homens e mulheres dançavam e agarravam-se de uma forma repreensiva. As mulheres, vestiam roupas vermelhas e não azuis ou púrpuras como o de costume. Seus rostos pintados com fortes maquiagens. As pernas, braços e até mesmo ventres ficavam amostra.

Nas laterais, piscinas de água quente das quais vapores emanavam. Homens em mulheres relaxavam, ou mesmo se tocavam no interior destas piscinas. Mais adiante, um altar, com estátuas dos deuses da fertilidade e seus órgãos genitais desproporcionais que eram venerados por sacerdotes. Tudo aquilo de uma só vez, atordoava os sentidos e a racionalidade do monge. Como era possível que em um local que parecia ser um bordel, sacerdotes e sacerdotisas estivessem realizando um ritual?

Archibald ficou paralisado a observar tudo o que ocorria, enquanto isso, An Lepard encontrou uma companheira para dançar, misturando-se à aglomeração de pessoas. Archibald hesitava e preparava-se para dar meia-volta e deixar aquele local. Não viu de onde vieram duas mulheres, muito bonitas, com os corpos cobertos de suor, mas também cobertas com o odor de fortes ervas aromáticas. Só soube que elas puxavam-no pelos braços, levando-o para o centro da grande pista de dança. Aos poucos, o ex-monge foi contagiado pelo ritmo, calor e excitação. Uma espécie de transe se apossou de seus sentidos e dançou por horas, suando e enroscando-se com as mulheres que ofereciam beijos e carícias em meio àquela dança erótica coletiva. E a dança, era apenas o início dos rituais dedicados ao grande deus da fertilidade de Tchilla, assim como aos deuses menores da fertilidade. Em dado momento, a percepção de Archibald abriu-se, sentindo grande calor em seus pontos vitais e seus olhos enxergaram manifestações do mundo invisível a interagir com todos os presentes naquele ritual de grandes proporções.

No dia seguinte, acordou nu, com diversas mulheres e homens nus ao seu redor, uns sobre os outros. Sentiu-se estranhamente leve e purificado. As memórias do que vivenciara na noite anterior não estavam claras, mas a segunda visão adquirida, ao menos uma parte dela, parecia permanecer. Olhava para as próprias mãos que pareciam ora ter cinco dedos, ora dividiam-se em dez, ora em quinze. Ao caminhar para além das camas que ficavam além do altar, foi cercado por dois sacerdotes. Um deles cobriu seu corpo com um manto vermelho enquanto o outro fez um sinal em sua testa com uma espécie de tinta quente, ou mesmo, uma cera quente. Era estranho, mas podia entender perfeitamente as palavras dos sacerdotes, mesmo que ainda não falasse bem a língua local. Parecia que eles falavam diretamente em sua mente. O que lhe disseram, perturbava sua fé perdida e sua racionalidade construída.

Esqueceu-se de Lepard e saiu pelas ruas, caminhando com os pés descalços olhando para o vazio. Sem saber por que nem para onde ia, viu-se subindo os imensos degraus do templo de Araior.

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