Era bem cedo. Um dos aldeões encontrou Kyle desacordado, todo molhado, coberto pelo orvalho da manhã. Tentou despertá-lo sem sucesso e foi chamar o senhor e protetor daquela pequena comunidade. Pouco depois, chegou ao local um senhor muito alto e de idade avançada. Tinha uma rebelde e rala cabeleira branca que mal cobria a careca vermelha e lustrosa. Ele ajoelhou-se ao lado de Kyle e pinçou seu nariz enfiando os dedos nas narinas. Puxou até erguer a cabeça do rapaz do chão e com a outra mão abriu sua boca aproximou-se para olhar lá dentro.
– É – comentou com a meia dúzia de curiosos que o rodeavam – Não vai acordar. Vamos rapazes, uma ajudinha aqui.
Estes, muito prestativos, carregaram Kyle até a casa do protetor no entroncamento adjacente.
Kiorina despertou muito bem-humorada. Saiu de seu quarto e encontrou uma mesa posta para o desjejum que faria inveja à nobreza de Lacoresh. Havia uma grande variedade de frutas, pães, bolos, uma jarra de suco vermelho e cheiroso, leite, mel, etc. Provou algumas daquelas iguarias agradecendo poder comer algo assim, após tanto tempo. Não comia bem assim desde o período em que esteve na casa de Melgosh, na ilha de Shind.
Gorum chegou com uma cara amassada de antes de ontem, mas disse bem humorado: – Dormir em uma cama! Nunca pensei que sentiria tanta falta... Ah, e bom dia, Kiorina.
Ela engoliu o pão e respondeu animada – Bom dia!
– Mas cadê o Kyle? – indagou o gigante ajeitando a barba despenteada.
– Não vi...
– Então o garoto madrugou... – Gorum sentou-se à mesa tentando se ajeitar no banco, baixo demais para sua altura. Comeu em silêncio deixando a mente flutuar entre diversos pensamentos.
– Contrastes... – murmurou.
– O que disse, Gorum?
– Ah, só pensei alto.
– Sobre?
– Contrastes. Dormir ao relento, ou em uma cama confortável. Não ter o que comer e ter uma mesa como esta. Gentileza e crueldade. Guerra e paz...
– O mestre Heirich dizia que as diferenças são o que definem as coisas. Não perceberíamos o frio sem o calor. É como se para que existisse a bondade, também seja preciso existir a maldade. Ele dizia que apenas o todo podia contrapor a dualidade.
– É? Mas e o nada? Não é o oposto de todo?
Kiorina riu. – Eu mesma fiz essa pergunta a ele.
– E o que ele disse?
– Que não há o nada. Que o bem e o mal são expressões do todo e que este é a manifestação da inteligência. O quente e o frio seriam apenas estados transitórios de uma substância, como a água.
– Bah, não aguento esse tipo de conversa. Para mim, isso só serve para dar nó na cabeça e perder tempo. No lugar disto, prefiro uma boa anedota. Ao menos além de se perder tempo, damos umas boas risadas.
– Bom, foi você quem começou...
– É, estou mesmo me tornando um velho resmungão – Gorum chacoalhou a cabeça e estremeceu.
– Que foi isso? – Kiorina estranhou aquela atitude.
– Nada. Só pensei que estou começando a ficar como meu pai.
– É? Você nunca me falou sobre ele...
– De certo. Sabe como é difícil falar dos pais... Digo, depois que já se foram.
Kiorina engoliu as lágrimas que pensar em seus pais provocavam. – Sim, eu sei.
– Bem, meu pai era ferreiro. E apenas ferreiro. Foi com ele que aprendi o ofício, desde a infância. Eu era o quarto filho, mas o primeiro homem.
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Oráculo Esquecido
FantasyAs esperanças do reino de Lacoresh estão nas mãos de Kyle e seus companheiros e sua missão de obter respostas junto ao Oráculo. Mas antes de obter tais respostas, outras revelações mostram que um mal que surge nos reinos do Vale Verde. Seria algo o...