CAPÍTULO 58

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Era bem cedo. Um dos aldeões encontrou Kyle desacordado, todo molhado, coberto pelo orvalho da manhã. Tentou despertá-lo sem sucesso e foi chamar o senhor e protetor daquela pequena comunidade. Pouco depois, chegou ao local um senhor muito alto e de idade avançada. Tinha uma rebelde e rala cabeleira branca que mal cobria a careca vermelha e lustrosa. Ele ajoelhou-se ao lado de Kyle e pinçou seu nariz enfiando os dedos nas narinas. Puxou até erguer a cabeça do rapaz do chão e com a outra mão abriu sua boca aproximou-se para olhar lá dentro.

– É – comentou com a meia dúzia de curiosos que o rodeavam – Não vai acordar. Vamos rapazes, uma ajudinha aqui.

Estes, muito prestativos, carregaram Kyle até a casa do protetor no entroncamento adjacente.

Kiorina despertou muito bem-humorada. Saiu de seu quarto e encontrou uma mesa posta para o desjejum que faria inveja à nobreza de Lacoresh. Havia uma grande variedade de frutas, pães, bolos, uma jarra de suco vermelho e cheiroso, leite, mel, etc. Provou algumas daquelas iguarias agradecendo poder comer algo assim, após tanto tempo. Não comia bem assim desde o período em que esteve na casa de Melgosh, na ilha de Shind.

Gorum chegou com uma cara amassada de antes de ontem, mas disse bem humorado: – Dormir em uma cama! Nunca pensei que sentiria tanta falta... Ah, e bom dia, Kiorina.

Ela engoliu o pão e respondeu animada – Bom dia!

– Mas cadê o Kyle? – indagou o gigante ajeitando a barba despenteada.

– Não vi...

– Então o garoto madrugou... – Gorum sentou-se à mesa tentando se ajeitar no banco, baixo demais para sua altura. Comeu em silêncio deixando a mente flutuar entre diversos pensamentos.

– Contrastes... – murmurou.

– O que disse, Gorum?

– Ah, só pensei alto.

– Sobre?

– Contrastes. Dormir ao relento, ou em uma cama confortável. Não ter o que comer e ter uma mesa como esta. Gentileza e crueldade. Guerra e paz...

– O mestre Heirich dizia que as diferenças são o que definem as coisas. Não perceberíamos o frio sem o calor. É como se para que existisse a bondade, também seja preciso existir a maldade. Ele dizia que apenas o todo podia contrapor a dualidade.

– É? Mas e o nada? Não é o oposto de todo?

Kiorina riu. – Eu mesma fiz essa pergunta a ele.

– E o que ele disse?

– Que não há o nada. Que o bem e o mal são expressões do todo e que este é a manifestação da inteligência. O quente e o frio seriam apenas estados transitórios de uma substância, como a água.

– Bah, não aguento esse tipo de conversa. Para mim, isso só serve para dar nó na cabeça e perder tempo. No lugar disto, prefiro uma boa anedota. Ao menos além de se perder tempo, damos umas boas risadas.

– Bom, foi você quem começou...

– É, estou mesmo me tornando um velho resmungão – Gorum chacoalhou a cabeça e estremeceu.

– Que foi isso? – Kiorina estranhou aquela atitude.

– Nada. Só pensei que estou começando a ficar como meu pai.

– É? Você nunca me falou sobre ele...

– De certo. Sabe como é difícil falar dos pais... Digo, depois que já se foram.

Kiorina engoliu as lágrimas que pensar em seus pais provocavam. – Sim, eu sei.

– Bem, meu pai era ferreiro. E apenas ferreiro. Foi com ele que aprendi o ofício, desde a infância. Eu era o quarto filho, mas o primeiro homem. 

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