CAPÍTULO 37

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Nem mesmo os hábeis lagartos foram capazes de prever ou resistir ao ataque daqueles guerreiros de pele cor de cobre. Eram homens fortes, musculosos de cabelos raspados. Havia também mulheres guerreiras, atléticas, de cabelos curtos e lisos. Todos usavam apenas tangas, deixando os peitorais e seios nus. Os corpos eram cobertos por pinturas que combinavam vermelho terroso e preto. As mesmas camuflavam seus rostos e corpos quando deitados contra os charcos e lamaçais da região.

Os caçadores surgiram de repente. A primeira a cair foi Kiorina. O xamã indicou aos caçadores que ela precisava ser o primeiro alvo. Em instantes, os demais foram atingidos por dezenas de boleadeiras, redes e pedregulhos.

Bem amarrados, foram levados para uma das aldeias da tribo dos Ô-makô. Eram muitas cabanas de madeira com telhados compostos por camadas e mais camadas de fibras espessas, secas e bem amarradas. Entre duas das maiores cabanas havia uma tora alta, larga e comprida, cuja madeira parecia ter vindo de alguma outra região. A madeira era esculpida com figuras e pintada de vermelho e branco formando uma espécie de portal. Cordas feitas com cipó entrelaçado prendiam Kyle, Kiorina, Gorum, Azus e os demais pelos pés. Suas cabeças estavam longe do chão.

Um batuque ritmado despertou o filho do célebre cavaleiro Armand Blackwing. O rapaz sentia sua cabeça latejar e se odiava naquele instante. Como se deixaram capturar tão facilmente? O que aconteceria? Ao seu redor havia grande comoção. A tribo festejava o sucesso de seus caçadores. A visão de Kyle estava turva. Havia também um gosto ruim na boca: lama. A cabeça zunia e entre imagens desconexas que via ao seu redor havia uma figura que lhe chamava atenção: o xamã. O ser magrelo agora estava coberto por um pó branco. No rosto e pescoço uma pasta negra aplicada causava forte contraste. Acima da cabeça, uma touca de couro com um par de chifres costurados que pendiam para o chão. Kyle piscava bastante provocando lágrimas que limpavam, aos poucos, sua visão. A figura do xamã destoava dos demais membros da tribo, não devido a sua indumentária, mas sim devido sua alta estatura e constituição física débil. Os homens e mulheres de Ô-makô eram baixos com corpos fortes, músculos definidos e tórax largo e avantajado. Ao perceber a movimentação de Kyle um dos homens da tribo aproximou-se e puxou com vigor uma mecha dos cabelos que pendiam em direção ao solo.

- Seu puto! - resmungou Blackwing.

O homem deu uma gargalhada e disse uma série de palavras incompreensíveis. A batucada toda cessou dando lugar ao silêncio. O caçador tomou melhor empunhadura da cabeleira de Kyle, girando o punho e enrolando os cabelos até formar um grosso cordão um tanto desgrenhado. Isso fez Kyle gemer de dor.

Kyle escutou a voz de Gorum trovejar - Seu nanico covarde! Me solte e vamos ver numa luta justa quem é homem de verdade!

Enquanto Gorum esbravejava, Kyle sentia um forte calor no peito ao passo que muitos fios de seus cabelos eram arrancados. Ainda estava lá, por baixo das camisas a semente. A força vital da fada pulsava no peito de Kyle. Perceber isto foi um alívio!

Usando uma lâmina tosca, o caçador cortou os longos cabelos de Kyle agitando-os no ar provocando comemoração dos selvagens. O calor em seu peito aumentava e uma sensação de frio percorreu sua espinha. Escutou uma voz familiar sussurrar tão perto de seu ouvido que não teve certeza de que não estivesse de fato, dentro de sua mente. - Relaxe meu amigo. Tudo estará logo resolvido.

Ainda tomado pela surpresa, Blackwing se viu falando a língua dos selvagens com vozeirão autoritário - Escutem caçadores! Vocês libertarão essas presas, ou sofrerão as consequências!

Uma nova onda de silêncio tomou conta da tribo. E logo foi quebrada pela gargalhada do caçador atarracado que tinha nas mãos os cabelos removidos de Kyle. A gargalhada soou sozinha por uns instantes, até que toda tribo gargalhava junto com o caçador.

- Prometemos não ferí-los se nos soltarem imediatamente. - Ordenou Kyle, pronunciando aquela linguagem repleta de sons guturais.

O caçador, agora irado e transfigurado, empunhou a mesma lâmina que cortou os cabelos do cavaleiro e aproximou-se para proferir um golpe mortal.

Kyle, sem ter controle sobre o que dizia viu agora sua boca dizer em lacorês - Agora Kiorina, conforme lhe instruí!

Antes que o caçador completasse sua manobra, as mechas dos cabelos de Kyle que ele segurava foram consumidas por fortes chamas num só instante. Assustado, o homem recuou sacudindo vigorosamente a mão queimada. Kiorina desenvolvera seu potencial em magias do fogo de tal forma, que conseguia produzir alguns efeitos apenas pela concentração de seu pensamento.

Kyle voltou a falar - Liberte-nos, ou sofram as consequências!

O xamã tomou uma lança, avançando contra Kiorina.

Kyle advertiu - Atenção Kiorina, o xamã!

Antes de atingi-la, o magricela contorceu-se desesperado tentando apagar as chamas que emergiram de sua touca de couro e da sacola que carregava. Abandonou os objetos e fugiu horrorizado. Com isso, a moral dos demais despencou e a confusão teve início. O fogo também consumiu as cordas que prendiam a ruiva, mas ao contrário do que seria esperado, a moça não caiu de cabeça no chão. Ela flutuou e evocou mais chamas que rodeavam seu corpo, transformando-a numa espécie de gigante feito de fogo. Neste ponto, não havia caçador com coragem suficiente para confrontar aquela magnífica criatura de fogo. Kiorina esticava os braços e destes jatos de chama atingiam os telhadas das casas que acolhiam o fogo com avidez. Sob grande confusão, a tribo corria desordenadamente mato adentro abandonando a vila para ser consumida pelas chamas. Após castigar um pouco mais as construções próximas com jatos e bolas de fogo, Kiorina pousou dispersando as ondas de chamas que a envolviam. Ainda usando sua magia, rompeu as cordas e fez com que todos pousassem suavemente no areal circular que demarcava o centro da vila.

Kiorina tinha os olhos verdes, brilhando, cheios de lágrimas e correu para abraçar Kyle, muito emocionada.

- Eu vi! Eu vi!

- Ei calma! Já passou... - disse Kyle, novamente controlando sua boca.

- Foi ele que nos salvou! Foi Noran!

- Noran? - indagou Gorum deixando-se contagiar pelas lágrimas. - Como assim, Noran?

Kiorina soltou Kyle e voltou-se para Gorum. Kyle corou, coçando o couro cabeludo, que ardia e coçava horrivelmente. Seus cabelos estavam espetados para o alto e muito bagunçados.

Kiorina ainda chorava - Ele estava muito bonito! Seu rosto brilhava. Era como o sol. Eu pensei que era um sonho. - fez uma pausa para enxugar as lágrimas, junto com um bocado de lama seca, ainda presa em seu rosto. - Mas quando abri os olhos, eu sabia que era real. Ele soprou a minha testa e fiquei muito tranquila. Muito concentrada. Acho que.... - soluçou a ruiva - nunca estive tão concentrada em toda minha vida.

- Eu vi em seus olhos - contou Gorum - nem parecia que estava aqui.

- Sim! Ele que falou através de mim... - De repente, tudo fazia sentido para Kyle - Eu sabia! Foi ele que me salvou... Quero dizer, depois do ataque do Blukutil, lembram?

- É mesmo! - concordou Kiorina - Me lembro bem... Você já estava pálido e voltou de repente! Repetia o nome dele...

Gorum enxugou as lágrimas e disse - Muito obrigado! Sei que pode nos ouvir. Muito obrigado, duas vezes, meu amigo.

- Humanuz shhhorar depoiz! Agora fugssshir! - interrompeu o lagarto Azus.

- Tem razão! - corroborou Kyle - Vamos antes que eles mudem de ideia.

Kiorina olhou para o chão próximo de onde estivera o xamã e sorriu. Ali estavam alguns de seus pertences. "Isto ainda pode ser muito útil" pensou enquanto apanhava suas pedras preciosas. Quanto ao resto, as armas e carga da viagem, estavam perdidos no interior das cabanas que eram consumidas pelo incêndio. Teriam que se virar sem tudo aquilo.

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