Arávner pôs as mãos sobre a testa de seu servo, Kurzeki. Era hora de libertá-lo de sua prisão, pois sua verdadeira personalidade, seu verdadeiro eu, e seus poderes estavam aprisionados no fundo de sua mente.
Há muitos anos, Kurzeki fora o mais brilhante aluno do renomado Mestre Heirich, na Alta Escola. Então, era conhecido como Kímel Lorual. Um gênio como ele, com incríveis aptidões para magia aparecia apenas uma vez a cada geração. Formou-se mago pela escola chegando ao sétimo ciclo com apenas quinze anos de idade. Mas diferente dos demais magos que se estabeleciam como professores ou conselheiros em alguma cidade, Kímel deixou Lacoresh para fazer viagens que poucos ousavam fazer. Foi ao encalço dos mistérios perdidos da velha civilização dos Vetmös, em especial, conhecimentos da Alta Magia existente outrora. Sua busca obsessiva pelo conhecimento e poder o levaram a várias das antigas torres arruinadas e ruínas das cidades decaídas do império dos Vetmös. Em uma destas velhas torres encontrou congelado numa tumba um sobrevivente da velha raça. Investigou uma maneira de reanimá-lo.
A magia que atuava sobre o túmulo era temporal, de natureza semelhante àquela que selava o planalto onde ficava a velha Trinidacs e as Torres Lunares. Ao despertar, Arávner trouxe de sua época apenas as roupas que vestia e uma tiara que usava para comunicar-se com sua esposa. O processo de libertação de Kímel dava-se através de uma rememoração de seu primeiro encontro com Arávner.
– Finalmente – dissera Arávner em Iven, a velha língua que há milênios não era pronunciada.
O rapaz, Kímel, não compreendeu. Estava surpreso por sua magia ter funcionado. Trocaram algumas impressões sem conseguirem alcançar entendimento. O lacorês era uma derivação muito distante do Iven para que pudessem dialogar. Mas Kímel conhecia um amplo leque de feitiços e ativou uma magia de tradução.
Arávner usou seu verdadeiro nome – Sou Ren Vara Uÿk.
Ao sair da câmara Arávner caiu no chão sentindo fortes dores nos ossos. Era a maldição dos Vetmös que agia sobre ele. Kímel observou que sua pele, antes alva e perfeita começava a ser tomada por manchas. O Vetmös cuspiu um dente que saiu espontaneamente.
– É a maldição!
– Maldição?
– Sim... Minha raça caiu em desgraça...
Os deuses partiram para nos castigar. Sem eles... Nós...
Kímel ajudou o homenzarrão a retornar ao esquife. Havia um resíduo da magia que o aprisionava. Kímel conseguiu canalizá-la para minimizar os efeitos da maldição. Arávner tornou-se um velho, todo enrugado, corcunda e deformado.
– Eu preciso vê-la, – pensava em sua esposa – será que todos despertaram também? – E colocou a tiara e ativou sua magia. Quando retornou, soube que apenas ele havia retornado.
Kímel ansiava por conhecimentos da antiga civilização. Havia poucos resquícios desta afora as velhas construções e algumas poucas inscrições. Todos os livros e pergaminhos haviam virado pó. Sob a orientação de Arávner, trabalharam numa elaborada magia para construir um corpo. Assim, poderia abandonar a tumba e explorar aquele novo mundo.
Arávner contava histórias sobre as torres e seu imenso poder mágico capaz de transportar pessoas entre os continentes e de abrir pontes entre diferentes mundos. Um poder que era pouco usado devido à regulação imposta pelos Arquimagos de Trinidacs. Até que o imperador Merrin e seu conselho decidiram copiar o projeto das torres e erguê-las ao redor da capital do império, no novo continente. Quando o projeto foi concluído, os Vetmös tiveram um imenso poder em mãos, nunca antes experimentado. Aquelas ideias seduziam o jovem Kímel e ele trabalhou ardentemente na construção de um novo corpo para Arávner. Juntos, estabeleceram uma torre de comunicação para outros mundos e dimensões. Foi quando o próprio Kímel começou a experimentar as incorporações para obter mais conhecimentos. A dupla investigou com fervor uma maneira de eliminar a magia que selou as torres originais. Sucessivas incorporações de espíritos e demônios levaram Kímel a vivenciar momentos de loucura. Um dia, o próprio Kímel destruiu o laboratório e confrontou Arávner. O antigo fez o que pode para subjugar seu discípulo encontrando apenas uma solução para afastar sua loucura e comportamento agressivo: aprisionar seus conhecimentos no fundo de sua mente. Quando isto ocorreu, Kímel morreu e deu lugar à criatura que passou a chamar a si mesmo de Kurzeki.
De volta ao presente, após um intenso e delicado trabalho de magias dos antigos Vetmös, Arávner finalmente retornou a Kurzeki as antigas memórias de sua vida como Kímel Lorual. O pequeno servo abriu os olhos e encarou o teto escuro.
– Mestre! Eles virão! Eles virão!
– Quem? – o homenzarrão quis saber.
Kurzeki encarou-o nos olhos com uma expressão que misturava medo e loucura.
– O mestre nunca deveria ter confiado em Thoudervon!
– Do que falais, Kurzeki?
– Nunca foram os demônios... São os conquistadores. Foi por isso que os Arquimagos construíram as torres.
– Arquimagos? Nada do que fala faz sentido! – Arávner temia que a loucura estivesse de volta. Temia ter falhado em recuperar a mente de Kurzeki.
A mente dele se reintegrava aos poucos. Seria difícil, senão impossível explicar para Arávner o que havia acontecido consigo. Sua mente, de fato, havia sido dividida, mas não permaneceu aprisionada no fundo da mente, como supunha Arávner. Ao ser selada, a mente racional e brilhante de Kímel buscou uma válvula de escape e isto se deu, não somente para o plano astral, adjacente ao plano físico, mas para um espectro de outros planos. Esta parte de sua mente vagou e aprendeu.
– Você o conheceu, mestre, sei que sim!
– Conheci a quem, Kurzeki?
– Zho Morkian.
– Sim, o conheci e ele está morto.
– He he he he... – o servo disparou uma série de suas habituais gargalhadas – Morto, mas não destruído. Ele retornou e continua sua obra, mas não usa seu velho nome.
– Zho? Retornou?
– Não é outro, senão o esqueleto que reponde pela alcunha de Thoudervon.
Arávner sentiu-se enjoado, seus lábios tremeram e ficaram esbranquiçados.
– Tu estais a delirar, Kurzeki. De onde tiraste tal fantasia? – ele racionalizou.
– Eu vi, mestre, via muitas coisas. Mas não pode ser tão tarde para detê-lo.
– Deter Thoudervon? Certamente não está nos meus planos.
– Mas o que pretende fazer?
– Ficar fora do caminho dele, ainda mais se houver alguma verdade no que tu disseste. É algo sobre o que preciso ponderar. Se Thoudervon for mesmo um dos arquimagos...
– Mas ele é, mestre! Ele é!
– Veremos... Por hora, precisamos organizar nossas defesas. Penso que receberemos visitantes indesejados.
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Oráculo Esquecido
FantasyAs esperanças do reino de Lacoresh estão nas mãos de Kyle e seus companheiros e sua missão de obter respostas junto ao Oráculo. Mas antes de obter tais respostas, outras revelações mostram que um mal que surge nos reinos do Vale Verde. Seria algo o...