Capítulo 68

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Tonuak era uma cidade singular. Como outras tantas daquela região, possuía um governo independente. O comércio por navegação era uma das principais atividades e o governo se dava por um conselho presidido pelos patriarcas da Casa Comercial Muntau, a mais poderosa da cidade. Há muito tempo foram abolidas da cidade os conceitos de nobreza e direito de nascimento.

O jovem Marino Muntau havia assumido a liderança de sua casa após um naufrágio que levou a vida de seu pai e seu tio. Era uma pessoa reservada e difícil de ser vista. Kiorina, após muito custo, havia conseguido ser recebida na sede da casa comercial, uma impressionante construção em madeira que tomava o espaço de um quarteirão no centro da cidade, nas proximidades da região portuária. O lugar tinha algo que fazia a moça se recordar das instalações da Alta Escola de Magia em Kamanesh.

A ruiva penetrou na sala de reuniões dos Muntau e ficou impressionada pela iluminação e decoração. Havia uma enorme mesa oval com cerca de trinta assentos e na cabeceira estava o jovem líder da casa comercial. Um criado servia chá. Possuía pele morena e feições características do povo de Ô-makô. Vestia uma roupa simples tingida de amarelo usada pelos servos em Tonuak. De acordo com as tradições locais, os servos eram bem pagos, bem tratados e honrados pelo tipo de serviço que prestavam. O velho código de Tonuak exaltava o valor de se prestar serviço.

Outro servo que acompanhou Kiorina até ali anunciou-a - Srta. Kiorina DeLars de Lacoresh.

Marino ergueu os olhos e sobrancelhas para observar a jovem. Havia malícia em seu olhar. Tinha aparência jovial e seus cabelos castanhos cacheados reluziam, pois usava óleo para se pentear. Suas vestes eram sóbrias e requintadas, o que fez Kiorina lembrar-se das roupas que seu pai fazia para a nobreza de Lacoresh.

- Aproxime-se Srta. - disse em lacorês com sotaque forte e estranho - Sou Marino Muntau, em que posso servi-la?

O criado indicou um assento para ela. As cadeiras eram feitas de madeira, mas os assentos e encostos eram de fibras trançadas. Algo bastante exótico para a lacoresa.

- Vim para requisitar o navio dacsiniano conhecido como Estrela do Crepúsculo.

- Requisitar? Quer dizer, fretá-lo para uma viagem? Uma viagem a Lacoresh?

- Sim, precisamos do navio, mas não para ir a Lacoresh. O destino é Saubics, no Vale Verde.

- Ah, Saubics... Sabia que há uma guerra em curso na região?

- Ouvi dizer - mentiu Kiorina.

- Ir para uma zona de conflito custa muito mais.

- Por falar em custo, quanto custa a sua vida e de todos os habitantes de Tonuak?

Marino deixou escapar uma gargalhada suave - Mas o que é isto? Uma ameaça?

- Não, nada assim.

- Meu pai me falava muito sobre a estranha maneira dos lacoreses de fazer negócios, e eu não dei a devida atenção. Se não vai me matar, mate minha curiosidade.

- O fato é que o mal está crescendo. Ele já tomou Lacoresh e algo pior está para emergir no Vale Verde. Trata-se de um antigo demônio. Se não for impedido, será uma questão de tempo, pouco tempo, para que sua Tonuak venha sofrer as consequências.

Ele escutou, mas antes de responder, não conseguiu se conter e caiu na gargalhada. Tentou elaborar uma resposta por diversas vezes, mas não conseguiu falar devido ao ataque de risos. Já vermelho e vertendo lágrimas, conseguiu se acalmar.

- Me desculpe Srta. Kiorina, mas esta foi a proposta comercial mais estranha que já recebi. Você e seu pessoal não tem dinheiro de verdade, certo?

- Temos algum dinheiro.

- Certo, mas falemos sobre seu grupo. Por acaso, pretende comprar passagens para você, seu companheiro lacorês e mais alguém?

- Bem, sim.

- Deixe-me adivinhar. Quer transporte para a antiga tripulação do tal Lepard Baltimore? E mais, vão querer viajar no Estrela do Crepúsculo, estou certo?

- Sim.

- Pois vou deixar claro: não vendo passagem alguma para aquele grupo. Não confio neles. Se quiser um navio é melhor juntar dinheiro para comprar um.

- Mas o que eu disse é verdade! Precisamos impedir o retorno de Marlituk!

- Ora, srta. Não me venha com essa história de demônios e do fim dos tempos. Isso é tudo coisa do passado. Há milhares de anos que não se vê demônios em lugar algum. Foram todos destruídos ou expulsos na época da Guerra Milenar. Danko, por favor, mostre a saída a srta. DeLars.

- Mas o Sr. precisa acreditar! É verdade! Estão todos em perigo.

- É uma pena, não é, Ximbul? - Ele dirigiu-se ao criado de tez morena - Uma moça tão bonita ser completamente lunática...

Ximbul riu discretamente.

- Por favor, srta. - pediu Danko - venha comigo.

- Sim, já vou! - disse Kiorina irritada - Escute aqui, seu almofadinha arrogante, espero que tenha uma indigestão ao engolir seu próprio fel.

Marino gargalhou - Papai estava certo! Há há há! Lacoreses são mesmo gente muito estranha...

Kiorina saiu se contendo para não atear fogo em todo aquele quarteirão. A madeira queimaria velozmente, ela pensava. Sentiu-se derrotada. Sua ideia de conseguir o navio através de um acordo havia falhado. Restava agora aderir ao plano de Lepard e os demais: tomar o navio à força.

Marino riu um pouco mais até que parou.

- Ximbul, vá buscar Zorena. Estes aí vão aprontar alguma. É melhor agirmos preventivamente.

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