CAPÍTULO 46

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Calisto observava calmamente a luz bruxelante da vela sobre a mesa. A fúria que sentira no seu âmago agora estava sob controle, adormecida, reservada. Toda sua vida, tudo pelo que passou servira para conduzi-lo àquele momento. Um momento de revelação, o despertar de sua consciência. Aquele que conheceu como sendo seu pai era um ser inumano, sem coração e consciência: Thoudervon. Um monstro cujo mistério, mais cedo ou mais tarde, teria de compreender e talvez confrontar. Pela primeira vez, a compreensão do que é ser humano alcançava a consciência do rapaz.

Durante semanas, tornou-se prisioneiro na Necrópole dominado pela dor da perda de sua amada. Depois disso, Thoudervon liberou-o para retornar à sua propriedade. Em seu novo e pequeno baronato, entre o ducado de Kamanesh e a capital, Lacoresh, dedicou algum tempo para organizar seus pertences. E foi com dor e forte aperto no peito que confrontou a coleção completa do escritor E. Alembrel, presente dado a ele por sua amada e falecida Rainha Alena.

O que sentiu e passou a compreender foi inesperado. Perguntava-se: como simples livros de estórias poderiam ter clareado sua mente e lhe conferido entendimento sobre a humanidade e sobre si próprio? A resposta era clara: fora enganado. Toda sua criação e educação por Thoudervon, e depois, seu contato com Weiss e demais necromantes, fizeram que tivesse uma compreensão parcial da realidade. Começara a vislumbrar essa nova realidade durante seu treinamento com o tisamirense, Radishi.

Agora compreendia que esteve errado. Assim como todas ações daqueles que usurpavam o reino, para as quais, ele vinha erroneamente colaborando. Soube que se quisesse encontrar a paz, bastaria abandonar tudo aquilo. Aceitar as más ações de seu passado e deixar aquele lugar para nunca mais retornar. Fora este o último desejo de sua amada. Ainda podia escutá-la em seus pensamentos. "Deixe Lacoresh para trás. Vá para longe. Comece uma vida nova e seja feliz, seja bom".

Por outro lado, a sensação de que deveria agir a fim de reparar o mal que ajudou a causar era dominante. Sabia que seu caminho futuro ainda estaria sujeito ao sofrimento, e que este duraria até que pudesse reparar o mal causado. Para reparar o mal, precisava impedir os necromantes, desmanchar seus planos e restaurar o controle do reino para seu povo. Com efeito, haveria dois caminhos. Abandonar os necromantes, deixar sua posição como barão e aliado para juntar-se aos rebeldes. Ou então, permanecer entre os vilões a fim de aprender mais sobre seus planos e eliminá-los quando menos esperassem. A sua escolha ficaria para depois, no momento, seus criados estavam a caminho para avisá-lo do visitante, mas não era necessário. Tinha ciência da aproximação de Jeero e de seu afilhado, Armand DeFruss.

A criada entrou receosa, não suportava olhar o rapaz nos olhos e perguntou cabisbaixa - O senhor já sabe, não é?

- Sim, obrigado. Providencie chá para meu convidado e alguns daqueles biscoitos doces para o garoto.

- Com quiser, meu senhor.

Logo Calisto se reunia ao experiente alfaiate e comerciante. Estava bem vestido, como um nobre, e o pequeno Armand imitava-lhe as vestes.

- Ora Jeero, há quanto tempo!

- Meu senhor, - curvou-se o homem - fico contente pela sua recepção calorosa. Algo de errado?

- Sim, é claro que sim! - dizia Calisto com tranquilidade e certa animação, um humor fora do usual - conte-me sobre os negócios.

- Os gastos da corte estão em alta, e seus domínios por aqui, cresceram e coletam mais impostos. Conforme a crença popular de que o senhor lê mentes, ninguém se arrisca a deixar de pagar o que é devido. Os coletores e demais servos não se atrevem a desviar recursos. Portanto, o tesouro do barão está crescendo.

- Sim, sei disso. Estou certo de que foi uma boa escolha tê-lo como meu tesoureiro.

- Acha que seu afilhado também irá desenvolver estas habilidades?

- É possível...

Calisto observava o menino, com as marcas do eclipse nos olhos e recordou a própria infância, sob os cuidados do detestável Thoudervon. De certo, esta criança e outras tantas faziam parte dos planos de conquista dos necromantes, ou de algo pior. Jeero observava que Calisto havia adquirido um tique nervoso, mas ignorava este fato. Em alguns momentos, usas mãos tremiam, em outros o pescoço dava algumas guinadas para a direita e os olhos pareciam piscar mais que outrora.

- Mas levará tempo - prosseguiu o anfitrião - por hora, que tal uns biscoitos?

O menino recusou, fazendo seu pai corar. Antes que pudesse falar qualquer coisa, foi interrompido pelo jovem barão. - Não importa. Ele sabe bem o que quer e o que não quer, certo? O que me faz lembrar... Como estão nossos negócios nas terras de Fannel? Como foi sua viagem?

- Foi proveitosa! A nova tecelagem dos Lars, não vai mal. Suponho que não haverá problemas com eles se não ficar clara nossa relação e a origem dos recursos iniciais.

- Nosso segredo já foi para o túmulo, mas considerando a natureza dos governantes de Fannel, não há garantias...

- Bem, eles têm muito com que se preocupar no momento. O novo barão está em dificuldades... Já se passaram mais de seis meses desde que assumiu, mas ainda há disputas de poder entre a nobreza. Além disso, os rebeldes ainda são uma força naquelas bandas.

- Verdade? Conte-me mais sobre isso.

- A instabilidade política tem dado espaço para o retorno daqueles que estão contra a coroa. Ao que parece, surgiu um novo líder entre os rebeldes.

- Interessante. O que mais soube?

- Nada oficial, sabe? Rumores, histórias... O tal líder, dizem que é um guerreiro formidável, de incrível agilidade. Que derrota soldados e cavaleiros bem armados com as mãos limpas. Tem alguns apelidos, como sombra azul, vento do norte, gatuno e outros nomes esquisitos. Além disso, costuma fazer discursos e pregações. Mesmo com toda perseguição, ele tem ganhado a simpatia do povo, que acaba lhe oferecendo cobertura, de algum modo. O senhor bem sabe, que a opressão naquelas bandas foi forte durante seu governo como Barão de Fannel, mas o senhor havia conquistado o respeito, ou ao menos, o temor do povo. É bem diferente com o novato, ele não tinha boa fama, talvez seja estudado demais, ou mesmo, por ser um pouco mole para exercer a posição que exige firmeza. Ele hesita e vem dando espaço para seus inimigos, que são muitos.

Calisto sorriu e Jeero imaginava que ria da notícias das infelicidades daquele que usurpou sua posição. Mas logo, viu que se tratava de algo a mais. Havia malícia no olhar de Calisto.

- Jeero, meu caro. Nos vamos colaborar para o infortúnio do Barão Adam. Vamos financiar seus inimigos com nossas reservas. Principalmente, os rebeldes.

Jeero gelou e empalideceu - Fala sério, senhor? Não teme que...

- Não se preocupe, meu caro. Faremos tudo com a maior cautela. A coroa e seus verdadeiros homens de poder, tem outras coisas em mente, que não esses poucos e resistentes rebeldes. A economia precisa fluir para que possam alimentar seus planos ambiciosos. O que faremos é favorecer a economia... e colocar um aliado no lugar daquele fedelho do Adam Fannel.

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