CAPÍTULO 75

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Era noite e o clima no navio de An Lepard era tenso. Havia muita discussão no convés. A tripulação desaprovava a presença de Teris a bordo, em especial, aqueles que haviam confrontado necromantes há alguns meses na costa de Dacs.

Na cabine do Estrela, o meio-esqueleto deu uma risada dirigindo-se ao capitão – Ora, mas a solução para este impasse é muito simples. Se sua tripulação não quer colocar o navio para navegar, que fiquem todos de folga, pois isto não será necessário.

– Como assim?

– Vou fazer este favor a vocês. Para Saubics, com tudo pago! Por conta do nosso amigo Blackwing.

Kyle estava acamado, mas conseguiu reunir forças para dizer – Teris, deixe de cena e vamos logo com isso...

– Me desculpe, meu salvador, mas depois de tanto tempo preso não consigo evitar. Enfim, todos ganharão. Chegamos logo ao destino e seus homens se verão livres de mim.

Teris caminhava sobre duas pernas de pau articuladas que montou com partes da amurada do navio. Usava um manto que cobria os ombros e as costas, mas deixava parte das costelas no peito à vista, assim como seus braços esqueléticos.

Foi até a mesa grande onde estavam as cartas de navegação e a caixa de madeira que continha as pedras ovais – Ao abrir esta, Kiorina se aproximou para vê-las com interesse.

– São nexos? – ela indagou.

– Nexos? Não, bela senhorita! Algo muito melhor! São Pedras de Almas. Nexos aperfeiçoados. Em cada um, temos a energia de múltiplos seres. Se usadas corretamente, fornecem imensa energia mágica ao portador. – Teris explicou apreciando uma delas entre seus dedos.

– Que tipo de seres?

– Neste caso, demônios. Mas não se preocupe, se toda energia for usada, o demônio e sua constelação irão se dissipar.

– Constelação?

– O conjunto de almas que o demônio corrompeu e engoliu para aumentar seus poderes. Note que aqui – indicou a caixa – Não estão aprisionados simples e fracos demônios, mas capitães, generais e talvez, até um de seus lordes.

– Você parece conhecer muito sobre demônios...

– Oh sim, trabalhei numa ordem de caçadores de demônios no passado. Caçávamos estes, mesmo após o fim da guerra.

– Incrível! – Kiorina mal acreditava que falava com alguém que havia sido testemunha da grande guerra milenar.

– A história se perdeu, há muitos relatos contraditórios... Poderia me contar como a guerra realmente acabou?

– Aqueles tempos eram muito confusos. Havia mais gente preocupada com a sobrevivência do que com registros históricos. Mas foi certamente devido a atuação e sacrifício do nosso Rei, Öfinnel Prístimos, que a guerra pode chegar a seu fim. Eu o conheci, pois trabalhava junto com seu neto, Tarquis Prístimos. Ajudei a forjar a espada que Tarquis passou a usar após a morte do avô, no final da guerra. Foi feita com lascas da Banidora, a espada de Öfinnel. Tarquis foi o último rei dos Hölmos.

Kyle falou mais uma vez, esforçando-se para sentar-se – Toda essa história é fascinante, mas precisamos prosseguir imediatamente.

Kiorina ficou frustrada, pois queria fazer outras mil perguntas ao ser ancestral.

– Muito bem – Concordou Teris – Vamos logo! Levou a Pedra para o convés e foi seguido por An Lepard e Kiorina. Sua presença afastou os marujos. Gorum estava com eles e tentava convencê-los de que o esqueleto não era tão mau.

Teris entoou um cântico com sua voz grave e fantasmagórica. Em dados momentos, soava como três ou quatro pessoas cantando ao mesmo tempo. Ergueu a pedra de almas, que emanava forte brilho a partir de suas ranhuras. O mar ao redor do Estrela do Crepúsculo se agitou, mas o navio permaneceu estável. Águas subiram e envolveram o navio formando uma bolha. Mas poucos compreendiam o que estava acontecendo. O fato é que o navio estava submerso. Todos se alarmaram ao sentir os corpos sendo empurrados para trás e precisaram se segurar em alguma coisa. O navio acelerava, acelerava e acelerava. 

Passaram-se horas até que o dia chegou, e com ele, puderam finalmente ver o que ocorria. Estavam viajando sob a superfície numa velocidade impensável. O azul escuro do oceano os rodeava por todos os lados. Ocasionais cardumes passavam pelo navio em alta velocidade. Teris mantinha sua concentração e a Pedra de Almas brilhava e sofria rachaduras. Kiorina ficou abismada. Nunca pensou ser possível realizar um feitiço tão poderoso e tão longo. Viajavam há mais de dez horas. Kyle saiu da cabine pela manhã e reconheceu o que viu. Aquele estranho túnel azul fez parte de suas visões.

Kiorina aproximou-se e disse – É incrível. Você anteviu isto, não é mesmo?

Kyle fez que sim – Escute Kiorina, não espero que me perdoe, mas espero que confie em mim. Quando chegarmos, preciso que sigam minhas instruções. No caminho que escolhi, temos chances de sobreviver, temos chances de impedir que um grande mal assole o mundo e talvez, depois de tudo, viver.

– Depois do que vi, quero dizer, como enfrentou Zorena e encontrou a ilha... Como convenceu o velho Teris a nos ajudar... Não me restam dúvidas sobre as suas visões. – Ela pensou em perguntar sobre o futuro, mas achou melhor não. Teve medo do que poderia ser revelado.

– Só quero que você saiba que você é importante para mim e que farei o meu melhor para protegê-la.

Kiorina acenou e disse – Obrigada – e saiu dali para ir descansar.

– Já estamos chegando? – indagou a Teris.

– Viajamos rápido, mas não tão rápido assim. Pode ir esperar dormindo. Eu posso seguir facilmente, pois não tenho músculos para fatigar.

Kyle encarou o morto-vivo e refletiu sobre como teve que liberar um malefício no mundo para poder deter outro pior. O que um ser com tais poderes poderia fazer no mundo? Não sabia ao certo, pois não explorou visões neste sentido. Havia três outras ameaças maiores para se preocupar e lidaria com duas delas, muito em breve.

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