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Eu já não enxergava mais por causa das lágrimas quando virei a primeira esquina. Sentia meu corpo arder, cortado pelo mato, molhado pelo sereno. Os dois capangas do meu pai corriam atrás de mim, mas eu não me dei o trabalho de olhar para trás nenhuma vez.

A ansiedade reprimia meus órgãos, esmagava minha cabeça. Com os pés queimando e o pulmão sem ar, tentei despistá-los com algumas curvas e descendo as ruas mais movimentadas, mas tudo foi em vão.

Ele sabia que eu estava viva. Meu pai, sempre tão asqueroso. Me perseguiria até depois da morte, se isso lhe fosse possível.

Não sabia em que direção eu estava seguindo, apenas sei que, de repente, as casas foram substituídas por folhagens e então por árvores, altas e densas. O som de animais selvagens me assustava, mas não tanto quanto os passos e a voz de álcool atrás de mim.

Eu paralisei assim que uma grande pressão reprimiu meu estômago e uma dr latejante atingiu minha cabeça. Fechei os olhos, repentinamente zonza. Quando abri, reprimi um choro baixo. Eu estava de frente para a Cerca.

Como uma enorme cúpula alaranjada, a Cerca era o instrumento mais mortal que mantinha todos os arthorianos presos. Qualquer um que ultrapassava, morria. Se não pela pressão sobre sua cabeça que poderia explodi-la, então por causa da imensa dor que o atingia. Queimados até a morte, literalmente.

Todo mundo sabia como a Cerca funcionava. E eu não estaria tão preocupada se atrás de mim não estivesse meu pai.

Engoli em seco, sentindo o corpo tremer e a angústia subir pelo estômago até a garganta.

Ao sentir um pedaço de metal gelado em minhas costas, desejei estar com Hale.

Eu senti o hálito pútrido de álcool dali quando meu pai abriu um sorriso. Sabia que tinha o feito. Reconhecia seu tom de voz sarcástico todas as vezes que o fazia.

— Você gosta de me dar trabalho, huh? — disse. — Pensei que estivesse morta.

Eu engoli em seco.

Não, por favor, ainda não.

— Parece que anda bebendo demais — falei. — Defuntos não andam.

Ele riu.

— É. Como se você, de fato, tivesse morrido. Eu te conheço, Gaëlle, você carrega o meu nome. O meu sangue. E infelizmente, possuí a mesma audácia que eu.

Ele estava certo. Eu deixei a água salgada escorrer pelo meu rosto, sabendo que no fundo, eu estava admitindo que ele estava certo. E, por mais que eu preferisse morrer, muitas coisas que eu carregava vinham dele.

Eu fechei os olhos, segurando forte para não chorar.

— O que você quer de mim?

— Você sabe o que eu quero!

Fiquei em silêncio.

— Ora, vamos! Você não é tola.

— Não. Eu quero a verdade. Você sabe muito bem como usar os Túneis, eu não sou estúpida!

Ele segurou meu braço com força e me virou, chegando tão perto, que eu podia sentir o álcool exalando de suas veias.

— Parece que seus amiguinhos não contaram a você como a Torre funciona, não é?

Eu parei.

— O que...

Meu pai riu de novo.

— Estúpida. Sim, você é, sim. É, de fato, uma pena seu irmão não estar mais vivo. Você ficou o dobro de teimosa desde que ele morreu e isso me irrita.

Engoli quando as lágrimas escorreram.

— Você é meu maior fracasso — ele soltou meu braço, ajeitando a postura.

— Então por que insiste tanto em vir até mim?

Ele enfiou as mãos no bolso, desviando o olhar brevemente.

— Sabe, eu poderia mesmo me dar o trabalho de te largar por aí e fazer outro filho, que sim, seria melhor do que o traste que você se tornou. Mas o meu tempo está acabando, e como eu não tenho nenhum outro além de você, então serve.

— E os filhos com sua esposa? Que tal usá-los em meu lugar para seja lá o que quer fazer comigo?

Vi a ira tomar conta de seu rosto quando a boca se contorceu e o nariz fungou forte. Ele fechou a mão em um punho.

— Não envolva-os nisso.

Balancei a cabeça. Eles você não toca um dedo com sua ira, não é?

— É, né?

Observei-o. Meu pai conseguia ser bonito. Possuía postura e elegância; quem o via de fora, de fato acreditava em um bom homem. Seus olhos se destacavam em meio aos fios loiros areia e grisalhos. Mas o que Markus tinha de beleza, ele não tinha de caráter.

— Oh, não fiquei magoada. Eles são pessoas decentes.

Precisei segurar firme. Com uma das mãos, apertei a lateral da minha calça, evitando ao máximo não enterrar minhas unhas na pele. Quando as lágrimas empoçaram meus olhos, eu tomei uma decisão. Se ficar ali, me levaria de volta a casa de Markus, eu preferia correr para a morte. Tinha certeza de que o Imperador desaprovaria essa ideia completamente, mas eu estava agindo de forma tão ingênua e emocional, que minha única preocupação era fugir do meu pai.

Então, de súbito, decidi correr. Eu sabia que não escaparia das mão dele, mas eu não continuaria ali nem que tivesse que morrer.

Como se eu pudesse atingir Markus de alguma forma, disse:

— E você é a minha maior decepção — falei, antes de golpear sua mão com uma adaga, deixando-a infincada.

E eu corri. Não para sua direção, nem para nenhum dos lados onde os capangas me alcançariam e sim, para trás, para a Cerca.

Forcei meus nervos até o fim.

Eu disse que preferia morrer do que ir com ele.

Arthora | A Espada de VanellaOnde histórias criam vida. Descubra agora