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Parte 3 – O outro lado

Arrependimento não é a palavra que eu daria ao que senti quando encostei na Cerca. Nem remorso.

Quando a dor imensurável me atingiu, eu fui impedida de gritar. Foi como se eu fosse rasgada em mim pedaços e meu estômago, perfurado vinte e três vezes.

Sem descanso, meus pés se moviam velozes; meu corpo era todo arranhado pelos arbustos, meus pulmões imploravam por uma fagulha a mais de oxigênio. Minha visão estava embaçada, tão turva. Meu coração era amarrado por espinhos enquanto, em meio às árvores, a pouca luz da lua era refletida em minhas veias.

Quando percebi que meu coração ainda batia, eu não parei. Continuei até ser esmagada pela minha própria angústia.

Havia ultrapassado a Cerca. A dor dilacerante quase rasgou meus músculos e estourou minhas veias; quase fez com que meu cérebro se tornasse nada mais além de uma massa cinzenta. Entretanto, eu corria tão rápido que chegava a duvidar do momento em que conseguiria parar.

Eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Meu corpo todo ardia em chamas, mas eu estava viva, do outro lado da Cerca.

O outro lado.

Sentia meu coração pulsar cada vez mais forte. Se isso não era uma prova, então eu estava morta e corria em direção ao lugar em que Hale me esperava. Apesar de que eu estava certa de que morte não fedia a corpos suados e nem a cinzas queimadas.

Assim que avistei a primeira casa de barro, deixei meus joelhos dobrarem-se no chão e permiti que as lágrimas escorressem. Silenciosas, como ele sempre quis. Elas vieram em um tom baixo e escorreram por todo o meu rosto, até que pingassem na lama embaixo de mim. E molharam também meu traje, já rasgado.

Minha cabeça pulsava. Não contei quanto tempo fiquei parada com a casinha de barro na minha frente e as lágrimas, que corriam como um rio. Um rio tão carregado; tão infinitamente vasto de lembranças que não deveriam ser lembradas, sentimentos que deveriam ser esquecidos.

Minhas mãos estavam trêmulas.

Eu as retorci, tentando compactá-las, segurando-as com firmeza. Meu peito farfalhava, minha garganta estava sem voz.

Eu sabia que não poderia escapar para sempre. Não do meu pai. Markus era um escroto, mas ele estava certo em uma coisa: eu tinha a mesma audácia. Ele sabia quando eu ia dar um passo. Ele sabia que algumas coisas que aconteciam comigo, nunca eram em vão. A maioria era parte de um plano. Apesar de que cair do penhasco nunca foi um plano. Nem mesmo uma vontade.

Eu carregava os mesmos genes que ele e, oh céus, como eu gostaria que não fosse assim. Se eu pudesse, apagaria tudo o que eu pudesse que vinha dele. Até mesmo a cor dos olhos.

Ali, próxima até de mais da floresta, com o sereno caindo sobre meus ombros, eu esperei. Esperei minhas mãos pararem de tremer, esperei que o coração desacelerasse, que as lágrimas cessassem. Eu poderia perguntar, mais uma vez, ao Imperador porque ele permitia esse tipo de coisa. Mas já estava tão cansada que não tinha mais certeza se eu me importava. Imaginava que a esse ponto tudo não passava de tolices de uma criança.

Quando tudo passou e eu voltei a enxergar, eu me levantei. Ainda com uma bolota na garganta e o corpo dolorido, limpei as mãos no traje e finalmente, observei.

E Santo Imperador.

Entre o vão de uma casa e outra se estendia uma das maiores vilas que eu já vi. As casas, todas bem iluminadas, carregavam o ar de tristeza.

Foram construídas à base de madeira e pedra, com os telhados de palha, alguns faltando pedaços. Pelo chão, lampiões se espalhavam, iluminando as portas e janelas das casas. Pela rua de barro, um silêncio. Em algumas casas havia buracos e em outras, manchas vermelhas.

Arthora | A Espada de VanellaOnde histórias criam vida. Descubra agora